Imagine a cena: o artista canta para a plateia, abarrotada de gente. No auge do refrão, declamado na ponta da língua pelo público, o cantor retira-se do palco, passa direto pela coxia, desemboca no saguão principal do teatro, cruza a porta da frente, atravessa a rua e apoia-se no balcão do boteco vizinho; pede seu cafezinho, sorve-o sem pressa, pendura a conta, faz o caminho inverso e retorna ao palco, retomando a condução da massa, que não perdeu o ritmo, nem calou o gogó em momento algum.
A cena, real, foi protagonizada por Wilson Simonal (1938–2000), cantor que, nas décadas de 1960 e 1970, hipnotizava os brasileiros com um suingue exalado de sua garganta em forma de vozeirão, que tomava conta do corpo todo de quem o estivesse ouvindo — e que, pouco tempo depois, foi relegado ao ostracismo, acusado de ser delator de colegas de esquerda para à ditadura militar. Ele é o foco do filme “Simonal”, de Leonardo Domingues, diretor que escolheu para interpretá-lo um ator à altura do personagem em talento: Fabrício Boliveira. Revelando sobre o trabalho em “Simonal”, Fabrício Boliveira acaba demonstrando o ator, o cidadão e o ser humano que é:
“Essa cena do teatro, que foi um plano sequência (sem cortes, filmada direto), representava uma grande dificuldade para mim”, ele confessa. “Como é que eu ia manter o público naquela energia do começo ao fim?”, indagou-se. “A cena fala de um maestro e de um público também. Foi um dia de filmagem em que fiquei bastante concentrado, empenhado em manter a plateia quente. Virei praticamente um animador de auditório (risos) — batia palma, conversava com a plateia. Senti felicidade em fazer essa cena e me coloquei em um lugar de artista diferente, que não é o meu. Até hoje encontro figurantes que participaram do trabalho e que comentam comigo como foi mágico aquele dia”.
“Simonal está no meu DNA!”
Boliveira foi chamado para viver Simonal porque o diretor queria um “algo a mais” para o personagem. “Se o Léo chamasse um cantor, talvez fosse mais fácil para ele — menos uma coisa para se preocupar”, brinca Fabrício. “Mas, durante todo o processo, saquei que ele queria ressaltar o lado humano do Simonal, o que me deu a possibilidade de elevar meu trabalho de ator”. Sobre os trejeitos e maneirismos característicos do cantor, Fabrício é enfático. “A preocupação em imitá-lo foi zero, até porque correr atrás de um virtuosismo ou tentar cantar e dançar como ele seria absolutamente ridículo. Melhor então ver o original, no YouTube, ouvir seus discos…”
Ao contrário, o Simonal de Fabrício quer pegar o espectador pela mão por outras vertentes — as mesmas que o conquistaram e que o levaram a atuar de forma orgânica, despreocupada e natural.
“Preferi focar no conteúdo, não na forma. Acabei descobrindo que aquele cantor que conhecia da tevê, das histórias, de quem já era fã, é praticamente um ancestral meu — até porque todo o artista negro desse país está conectado com Simonal de alguma forma. Simonal está no meu DNA! Se hoje eu faço uma novela das nove, é porque um dia Simonal foi rei. Um reinado que lhe foi tirado. Ele incomodava muito por ser negro e ter sucesso. E o álibi de que ele era um ‘negro abusado’ não funciona. Um negro neste país chegar aonde ele chegou é raro. Eu também sou uma raridade. Eu sou abordado na rua por policial que vem me perguntar quem sou eu — um negro desfilando pelo Rio de Janeiro em carro importado.”
“Afeto é verdade.”
Do processo de preparação para o filme fIzeram parte as conversas com os filhos de Simonal — Simoninha, Max e Patrícia — e com a mãe dos três, Tereza (interpretada no filme por Ísis Valverde), além das visitas aos shows do Baile do Simonal.
“Naquele ambiente, falando com aquelas pessoas, percebi que contaríamos, na verdade, a história de uma família destruída por conta de fake news e de racismo. Ali vi o amor daquele grupo de pessoas que sobreviveu mesmo depois do pai ter a vida acabada. É uma história de superação, de quem conseguiu se manter e reconstruir no tempo com muito amor. Assim, fui esbarrando nas verdades desse filme — e afeto é verdade.”
Fabrício também comemora e ainda se surpreende com a atualidade dos temas tratados em “Simonal”. “Estamos no momento certo de discutir o mal que uma informação não apurada pode provocar na vida de uma pessoa e de todos que vivem ao seu redor. Sim, Simonal cometeu um erro, mas uma nota no jornal Pasquim dizendo que ele dedurava seus colegas de esquerda à Ditadura Militar nunca foi comprovada ou desmentida solenemente. Ele pagou pelo crime que cometeu, mas e as fake news? Perduram até hoje”, indigna-se.
Conhecendo a trajetória
Aos 36 anos, Fabrício acumula experiência de quem já tem boas histórias para contar — e de quem já contou, no cinema, no teatro e na tevê, outras várias. Nascido em Salvador, começou nos palcos com o clássico “Capitães de Areia”, de Jorge Amado — produção da Companhia Baiana de Patifaria. Já aí, os personagens fortes começaram a fazer parte de seu cotidiano como artista. Na peça, vivia João Grande, o segundo homem na gangue de rua liderada por Pedro Bala.
No cinema, a estreia se deu em “A Máquina”, de João Falcão — filme que também trazia os conterrâneos Wagner Moura, Lázaro Ramos e Vladimir Brichta no elenco. Em “Faroeste Caboclo”, Fabrício encontrou seu primeiro protagonismo no cinema, dando vida a outro João — o João de Santo Cristo, da música homônima da Legião Urbana. Estourou com o personagem criado por Renato Russo e não parou mais.
Esquivando-se de papéis estereotipados, Fabrício chegou à tevê, chamando a atenção com personagens em novelas como “Sinhá Moça”, “A Favorita” e na série “Sítio do Pica-pau Amarelo”. Seu último papel na tevê foi o insolente Roberval, na novela das 21h da Globo “Segundo Sol”. Nos cinemas, pode ser visto recentemente em “Tungstênio”, de Heitor Dhalia (já disponível no NOW) e em “Além do Homem”, de Willy Biondani.
“Simonal” só estreia em 2019, quando o ator já terá na manga outros dois filmes: “Miragem”, de Erick Rocha, e “Prisioneiro da Liberdade”, dirigido por Jeferson De, que relata a história de Luiz Gama, homem negro que, apesar de nascer livre, é vendido pelo próprio pai, passando a viver como escravo. Ele consegue se alfabetizar, estudar e se tornar não só seu próprio advogado, como um dos melhores da época — um intelectual que libertou mais de mil pessoas nos tribunais, usando as leis. “Faço qualquer personagem, mas o conteúdo tem de ter a ver com aquilo em que acredito”, resume. Ah, também há uma minissérie na mira… “Mas, antes disso tudo, preciso descansar”, confessa, soltando seu sorrisão aberto, carregado de borogodó.