Encerrou-se o 47º Festival de Cinema de Gramado — um festival com clima estranho e que refletiu a situação pela qual passa a cultura no país. Apesar dos pesares, o evento sagrou-se campeão diante de bons patrocínios (os organizadores anunciaram um orçamento de R$ 4,6 milhões para 2020), bons filmes, reuniões e debates interessantes.
Pena as cenas vistas na noite de premiação (com direito a ataques com pedra de gelo no tapete vermelho e vários equívocos de roteiro e organização na cerimônia de premiação). A cerimônia terminou com a divulgação de uma carta de repúdio à violência e em defesa do convívio democrático feita pela organização:
“Como sempre fez em sua tela, Gramado acolhe, contempla e evidencia diferentes estéticas e opiniões, sendo historicamente um espaço para debates e manifestações. O que não pode admitir é a violência como prática ou resposta a ideias e opiniões diferentes. Só a tolerância e o respeito seguirão fortalecendo a história da cidade, do festival, reforçando e saudando o convívio de todos.”
Enfim, apesar das escoriações, todos saíram vivos. Sigamos em frente para destacarmos o tanto de coisa boa que foi vista na Serra Gaúcha nos últimos dias. Vejam 12 delas:
1. O campeoníssimo Pacarrete
Uma bailarina arretada, dada como louca pela população de Russas, cidadezinha do Ceará em que vive, arrebatou quem teve o prazer de conhecê-la no 47º Festival de Cinema de Gramado. A dita-cuja Pacarrete, encarnada com maestria pela maravilhosa atriz paraibana Marcélia Cartaxo, foi a responsável por fazer do filme de mesmo nome o grande vencedor do evento cinematográfico em 2019.
Pacarrete, o filme, levou oito Kikitos: Melhor Filme e Melhor Filme do Júri Popular, Melhor Direção (Allan Deberton), Melhor Atriz (Marcélia Cartaxo), Melhor Atriz Coadjuvante (Soia Lira, que dividiu o prêmio com Carol Castro, de Veneza), Melhor Ator Coadjuvante (João Miguel), Melhor Roteiro (Allan Deberton, André Araújo, Natália Maia e Samuel Brasileiro) e Melhor Desenho de Som (Rodrigo Ferrante e Cauê Custódio).
Allan Deberton, o diretor, conquistou o público e a crítica com o seu primeiro longa, que narra uma história que vem do coração, de suas lembranças de infância.
“Quando eu era pequeno, eu ouvia falar de Pacarrete e tinha medo dela. A cidade a desdenhava. Durante as filmagens revertemos essa situação. Todo mundo passou a amá-la”, contou.
Em Gramado ocorreu o mesmo. Depois da exibição, o filme foi aplaudido fervorosamente no Palácio dos Festivais. Marcélia Cartaxo foi a grande personalidade do festival, reverenciada por colegas, por jornalistas, pelo público.
Consagrada atriz e premiada com o Urso de Prata no Festival de Berlim em 1985 por sua Macabéa, de A Hora da Estrela, ela revelou que, quando criança, quis ser bailarina, como Pacarrete.
“Mas não tinha condições, era muito caro. Eu lá no interior do Nordeste, imagina… ela veio tarde, eu quase desisti dela, mas ela apareceu finalmente na minha vida. E, então, virei criança para realizar este filme e agradeço a todos pelo carinho e acolhida recebidos em Gramado”, resumiu.
Agora é aguardar pela estreia nos cinemas. Distribuidores e exibidores, por favor, não se acanhem!
2. Clássicos: Bacurau e Sônia Braga
A primeira exibição em terras brasileiras do longa de Kleber Mendonça Filho consagrado em Cannes era grande. Bacurau, que estreia na quinta, dia 29 de agosto, deixou o cinema atordoado, pensativo, metabolizando o que se passou na tela.
Ícone do cinema e da tevê brasileira, Sônia Braga reinou absoluta, sendo reverenciada por sua atuação no filme, por sua simpatia e desprendimento de vaidade (com os assumidos cabelos longos e brancos, vestes simples e nada de maquiagem) e por Gabriela, Dona Flor, Julia Matos, Solange, Maria, Mulher Aranha e todos os demais personagens que já encarnou.
3. O ator: Paulo Miklos
Este era barbada. Paulo Miklos, eterno Titã, cantor, compositor e músico, levou o seu primeiro Kikito de Melhor Ator por seu personagem em O Homem Cordial.
Para além da música, Miklos mostra-se um excelente ator desde Anísio, de O Invasor (2002). Ele esteve em Gramado para a exibição do filme, mas não na premiação, pois estava em cartaz com Chet Baker em São Paulo (a peça foi apresentada no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, no começo de agosto). Ele mandou um áudio de agradecimento ao diretor do filme, Iberê Carvalho:
“Agradeço ao Iberê Carvalho, meu diretor e roteirista, ao elenco e equipe fantásticos, ao júri e ao Festival de Gramado pelo prêmio que muito me honra. O cinema no Brasil é estratégico para nossa democracia e deve ser encarado como política de Estado, acima dos governos, livre de censura. Só assim serão possíveis filmes como O Homem Cordial. Viva o cinema nacional! Muito obrigado.”
Queremos vê-lo mais e mais!
4. Legalidade e Leonardo Machado
O aguardado Legalidade chegou em sessão especial para contar ao público que um dia um político gaúcho levantou-se contra Brasília em favor da garantia do cumprimento da Constituição do país. Teve gente entoando o jingle “Lá lá lá, Brizooolaaa”, da campanha para presidência da República de 1989.
O filme de Zeca Brito, muito bem produzido, deve encantar a gauchada nos cinemas. Leonardo Machado, que vive o líder trabalhista na tela, arrasa em seu último papel, mostrando sem exageros a personalidade forte de Brizola. Os pais de Leonardo receberam as homenagens pelo ator, que apresentou o festival por oito anos e que nos deixou no ano passado.
5. Hebe e Veneza
Decepção para uns, surpresa para outros: assim foram os longas Hebe e Veneza em Gramado. Ambos valem a ida ao cinema. O primeiro faz um recorte biográfico da trajetória da apresentadora e cantora. Teve gente que não estava preparada para ver Hebe transando. O filme calca no prazer de Hebe de beber um uísque e uma cervejinha e também em seu caráter humano e acolhedor. Dá saudade. Vejam e tirem suas conclusões. O longa saiu da Serra Gaúcha com o Kikito de Melhor Montagem para Joana Collier e Fernanda Krumel, que tiveram que sapatear para organizar os fatos da personagem “linda de viver”.
Já Veneza, segundo filme de Miguel Falabella (ele estreou com Polaroides Urbanas, em 2008), encanta pela Direção de Arte de Tulé Peake, que levou um Kikito; e pela atuação das atrizes, representada no Kikito de Melhor Atriz Coadjuvante atribuído a Carol Castro, que foi pegar seu troféu absolutamente incrédula. Ah, claro, há a espanhola Carmen Maura como protagonista. Sempre um deleite. O filme estreia em 12 de dezembro.
6. Lázaro Ramos
Ele já havia ganhado um Kikito de Melhor Ator em 2005 por sua atuação em Cafundó, mas estava trabalhando e não pode recebê-lo pessoalmente. Reconheceu que havia mais gente na fila antes dele para receber o Troféu Oscarito. Contudo, um Lázaro Ramos (capa) agradecido, sempre envolvente com sua personalidade ao mesmo tempo forte, simples e leve, cruzou o tapete vermelho ao lado do pai, Ivan, soltou uma gargalhada ao ver imagens suas dançando com Carla Perez em Cinderela Baiana, seu primeiro filme; e empunhou o Troféu Oscarito como um artista que reconhece a importância de seu papel na sociedade e na arte. Pediu para voltar daqui a alguns anos para receber outros prêmios em Gramado. Alguém duvida de que ele consegue?
7. Mauricio de Sousa, a Turma da Mônica e o novo parque de Gramado
Como não se encantar com um cartunista de mais de 80 anos com vigor inabalável, que criou para os filhos — e ele teve 10 — alguns dos personagens mais amados por crianças brasileiras — e de todo o mundo — de todas as idades? Mauricio de Sousa recebeu o seu Troféu Cidade de Gramado surpreso com a presença, em carne e osso, de suas criações mais conhecidas: Mônica, Cebolinha, Magali e Cascão, encarnados pelos atores que lhes deram vida no sucesso Turma da Mônica: Laços, ainda em cartaz nos cinemas (no detalhe, abraço coletivo admirado pelo prefeito de Gramado, João Alfredo Bertolucci, o Fedoca). Mauricio aproveitou a viagem para lançar seu mais novo empreendimento, um parque da Mônica em Gramado, que deve ser inaugurado no segundo semestre de 2020.
8. Divina Valéria, Wallie Ruy, Rômulo Braga e Marie
O trio de atores que estrela o curta Marie, de Léo Tabosa, voltou para casa premiado — elas com um Prêmio Especial do Júri (“por nos permitirem vivenciar deslocamentos corporais inesperados e por imaginarem um futuro travesti no país que mais mata trans no mundo”); ele com o Kikito de Melhor Ator em Curta-Metragem. Wallie Ruy ainda arrasou na premiação dizendo que àquela altura do campeonato ninguém ia dizer quanto tempo ela iria falar (rebatendo a solicitação da organização da cerimônia que pediu para os vencedores limitarem a dois minutos seus discursos de agradecimento).
O filme conta a história de Mário, que retorna ao sertão pernambucano depois de 15 anos para enterrar o pai, agora como Marie, uma mulher trans. Divina Valéria foi vista no longa de Leandra Leal Divinas Divas, de 2016.
9. Leonardo Sbaraglia
O ator argentino atraiu todos os olhares (principalmente da mulherada) com sua simpatia, charme e simplicidade. Veio a Gramado diretamente de Córdoba, onde estava filmando. Outro que ficou surpreso em ser homenageado.
“Nunca me sinto suficientemente honrado para ser homenageado. Espero voltar apresentando mais e mais trabalhos.”
Sbaraglia está em cartaz nos cinemas em Dor e Glória, de Pedro Almodóvar.
10. Os embaixadores do cinema gaúcho
Os atores Fernando Alves Pinto, Thiago Lacerda e Murilo Rosa receberam do Instituto Estadual de Cinema (Iecine) e do Museu do Festival de Cinema de Gramado o título de Embaixadores do Cinema Gaúcho.
O trio atuou em produtos para o cinema ou tevê baseados na história do Rio Grande do Sul e que viraram sucessos de público e/ou crítica – como Anahy de Las Missiones, O Tempo e o Vento e A Cabeça de Gumercindo Saraiva, estrelados pelos três, respectivamente. Vale lembrar que o Museu do Festival de Cinema funciona no Palácio dos Festivais e enfrenta dificuldades para conseguir material sobre os filmes que já passaram por Gramado, principalmente dos curtas-metragens.
11. O filme de Orlando Morais
O cantor e compositor Orlando Morais esteve em Gramado acompanhado das filhas Antonia e Cleo (esta na tela em Legalidade) para apresentar Orlamundo.
Eleito o melhor do Los Angeles Independent Film Festival, o documentário teve exibição especial durante o Festival e marcou a estreia em telas brasileiras. Surpreendeu pela qualidade das imagens da viagem que carrega o espectador pelos quatro cantos do mundo e, sobretudo, pelas músicas e parcerias mostradas por Orlando na tela — artistas como Caetano Veloso, a Velha Guarda da Portela e Monarco, o chinês Guo Gan e o africano Kassé Mady Diabaté. Boas imagens e boa música em um filme cheio de afetividades.
12. O sonho realizado de Dedé Santana
No documentário Tá Rindo de Quê, Dedé Santana faz um desabafo:
“Fiz com os Trapalhões algumas das maiores bilheterias do cinema nacional e nunca fui convidado para um Festival de Gramado. Não estou falando em ser premiado, estou falando em ser convidado para assistir mesmo.”
Neste ano, o evento cinematográfico corrigiu o erro de décadas e fez de Dedé Santana o padrinho da mostra Educavídeo. “Acho que merecia estar aqui pelo que já fiz pelo cinema. Imagina a alegria que estou! E muito emocionado com a lembrança”, afirmou o trapalhão.
Por Andréa Lopes