Bá Experiência por Diogo Zanella/Estúdio Telescópio
2 de fevereiro de 2023. Glória Maria nos deixou.
Glória foi a primeira repórter a aparecer na TV em uma época em que repórteres não apareciam no vídeo. E a primeira a aparecer ao vivo quando o Jornal Nacional passou a ser exibido em cores.
Ela também foi a primeira a participar de uma transmissão em HD no Brasil. E a primeira jornalista negra a conquistar grande destaque na televisão.
Por isso, Glória Maria é reconhecida como ícone e inspiração para uma geração de outras tantas mulheres negras — jornalistas ou não. Mas nem tudo foi Glória.
Glória Maria foi a primeira no Brasil a usar a Lei Afonso Arinos, em um caso de racismo no Rio Othon Palace, em Copacabana. O subgerente do hotel, que era norte-americano, a impediu de entrar no local por ela ser negra. Além de prestar queixa, a sagaz jornalista fez matéria na TV para expor o caso. A punição para o estrangeiro foi uma multa para deixar a delegacia.
3 de fevereiro. Luísa Sonza estreou no palco principal do Planeta Atlântida.
E, na minha opinião, fez a performance mais impactante do festival. Como no Rock In Rio, as primeiras palavras ditas no palco foram “puta, vagabunda, interesseira”. É a letra da música INTERE$$EIRA, assim mesmo, com cifrões e em caixa alta.
Conforme esta matéria de 2021, publicada no portal Splash, do uol, Luísa disse: “São as palavras que mais escutei nos últimos cinco anos”. E é verdade. Todos nós conhecemos os ataques misóginos aos quais ela foi submetida, e para os quais vieram as respostas através da sua música.
Da mesma forma que Glória Maria foi um símbolo de representatividade para mulheres negras, Luísa Sonza tem se tornado um ícone do feminismo para uma nova geração. Como Madonna foi também um ícone do feminismo para gerações anteriores.
5 de fevereiro. Madonna esteve no Grammy.
A rainha do pop anunciou a performance de Sam Smith & Kim Petras, que ganhou o prêmio de Melhor Performance Pop Solo ou Grupo. Kim é a primeira mulher trans a ganhar um gramofone dourado. Ao anunciar a performance, Madonna discursou.
“Aqui está o que aprendi depois de quatro décadas na música. Se chamam você de chocante, escandaloso, problemático, errático, provocador ou perigoso, você definitivamente está no caminho certo. Estou aqui para agradecer a todos os rebeldes por aí que estão abrindo um novo caminho e sendo criticados por tudo isso”.
Potente, né? Mas o julgamento do seu corpo teve mais foco que suas palavras. Isso mesmo. Após um discurso sobre o papel transgressor da arte, Madonna roubou a cena ao ser criticada por sua aparência.
Como disse no Twitter a página Madonna Literal: “o corpo de Madonna nunca foi para nosso prazer, é sua ferramenta. Seja grato pelo que ela te deu, e pelo que ela ainda pode te dar.”
Eu acrescentaria o seguinte: Madonna nunca pretendeu impor um modelo de comportamento. Ela queria ser uma inspiração para que mulheres não cedessem a críticas. E pessoas da comunidade LBTQIA+ também. Sou grato por isso. E Madonna deu a resposta cirúrgica para o ocorrido.
“Nunca me desculpei por nenhuma das escolhas criativas que fiz, nem pela minha aparência ou vestido e não vou começar (a fazer isso). Fui degradada pela mídia desde o início da minha carreira, mas entendo que tudo isso é um teste e estou feliz em fazer o pioneirismo para que todas as mulheres atrás de mim possam ter uma vida mais fácil nos próximos anos”.
Luísa Sonza, em seu show no Planeta Atlântida, trouxe um trecho da letra da música “Justify My Love“, de Madonna. Em um momento, lá estava a frase no backdrop: “poor is the man whose pleasures depend on the permission of another”. Ou, em português, “pobre é o homem cujo prazer depende da permissão de outros”.
Tanto Madonna quanto Luísa Sonza estão falando, de forma geral, sobre liberdade. Assim como Glória Maria também foi uma referência de liberdade feminina.
“A minha avó me ensinou algo que ficou pra vida inteira. Ela dizia: ‘Olha, Glorinha. Nossa história é uma história de falta de liberdade, de escravidão. A única coisa que você não pode permitir nunca na sua vida é que te coloquem alguma corrente’”.
Glória Maria já entrevistou Madonna. Luísa Sonza referenciou Madonna em seu show no Planeta Atlântida.
Glória Maria nos deixou no dia 2 de fevereiro. Luísa Sonza esteve no Planeta Atlântida no dia 3. E, no dia 5, Madonna foi, mais uma vez, atacada com comentários misóginos. Tudo na última semana.
Confuso essa paralelo entre as três? Quando comecei a escrever este texto, também achei. Mas depois percebi o quanto, na verdade, elas acabaram se conectando no meu imaginário nesses últimos sete dias, apesar de o feminismo não ser o meu local de fala.
Que possamos refletir de uma forma positiva sobre tudo o que elas representam. Que Madonna siga em frente sendo chocante, escandalosa, problemática, errática, provocadora e perigosa. Sem se desculpar por isso. Que Luísa Sonza continue capitalizando o ódio que recebe na internet através da sua arte. E, Glória, vai em paz. Como diz a Gloria Groove na introdução de um videoclipe: que a Glória Maria possa, em outro lugar, “renascer em toda sua Glória e alegoria“.
Nesta semana, no podcast Bá que papo, falamos sobre os shows do Planeta Atlântida, Luísa Sonza, a repercussão de Madonna no Grammy e sobre a partida de Glória Maria. Ouça agora no Spotify clicando aqui.
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Bá Experiência por Diogo Zanella/Estúdio Telescópio