Por Diana Lichtenstein Corso
Diana é psicanalisa e escritora. Entrevista feita pela também escritora e jornalista Angélica Kalil em 2015, e que está no livro Você é feminista e não sabe, de sua autoria e da ilustradora Mariamma Fonseca. Confira.
Existe um sentimento que une todas as mulheres? Não, justamente a nossa marca é a imparidade, talvez não seja para sempre assim. Nós somos órfãs de mãe, de uma mãe que foi órfã de mãe. Particularmente, eu sou uma mulher de cinquenta anos, minha mãe me teve com vinte, a mãe dela teve ela com trinta. A minha experiência de vida como mulher é absolutamente diversa da experiência de vida que a minha mãe teve e muito diversa da experiência que a mãe dela teve – mesmo sendo todas as mulheres da minha origem mulheres que ousaram, que ficaram sozinhas, que mudaram de país, que mudaram de língua, tanto a minha mãe quanto a minha avó. Mesmo assim, nossas experiências como mulher, no sentido de como lidar com o nosso corpo, em que momento cometer a maternidade, como criar nossas filhas – eu também tenho filhas –, foram muito diferentes. A gente basicamente conseguia dizer umas para as outras o que não fazer. E não o que fazer. Entre as mulheres, a comunicação é muito cifrada, muito pouco livre, é muito cheia de mentiras ainda. Acho que isso está mudando agora, neste momento, nesta geração que hoje se faz mulher.
É muito difícil generalizar, porque nós somos confundidas com algumas coisas que colocamos em cima para nos caracterizar como mulher. Por exemplo, se eu sair sem brincos, eu acho que eu não sou mulher suficiente, eu preciso voltar para casa, porque não há nada em mim que me faça sentir tão mulher como ter um brinco. Por que eu preciso de um traço qualquer para saber o que eu sou, aquilo que me dizem desde a infância? Porque eu não sei. E esta insegurança enorme, esta dificuldade de definir o que nós somos, é o que faz com que nós sejamos tão ímpares.
Acho que esta é a diferença que está acontecendo agora, as mulheres estão se sentindo mais passíveis de narrar-se umas para as outras. De poder partilhar suas sensações corporais, seus desejos, sua falta de desejo. Não é mais a Cinderela entrando no baile e tendo que vencer as outras mulheres para ser a escolhida. Nós estamos muito longe de ser escolhidas agora.
Isso tem a ver com a Simone de Beauvoir, quando ela diz que a mulher é o segundo sexo, que nós fomos construídas como mulher? Eu acho que os dois gêneros foram construídos. Nós ainda guardamos remanescentes daquela leitura do sexo único. As descobertas da anatomia feminina são muito recentes. A descoberta do papel do esperma e do óvulo enquanto o que gera – que não se considera o corpo da mulher apenas como um contêiner ou um receptáculo onde o homem coloca sua ideia – é recente. Na verdade se sabe anatomicamente, mas animicamente a mulher é tida como a que contém, não como aquela que faz. Essa dificuldade de nós sermos alguma coisa de positivo e não, como dizia Simone de Beauvoir, o outro que faz com que o homem seja um – então ele é um porque nós somos o outro, a exceção para que ele seja a regra. Esta posição de ser apenas uma alteridade ou, como dizia Virgínia Woolf, o espelho que devolve para o homem a imagem dobrada do que ele mesmo reflete, esta que faz o outro é muito difícil de se definir como um também. Principalmente porque nós sabemos que ninguém é um. Então, a questão de gênero, tanto para o homem quanto para a mulher, os dois perderam a certeza.
Simone de Beauvoir (1908-1986) é uma escritora e filósofa francesa. Autora, entre outros, do livro O Segundo Sexo (1949), fundamental para que se entenda o feminismo contemporâneo e o papel da mulher na nossa sociedade.
Virgínia Woolf (1882 – 1941) é uma escritora briânica, nascida em Londres. Sua obra é marcada pela análise psicológica dos personagens e por abordar a situação da mulher em uma sociedade moldada pelo patriarcado.
Acho forte quando você diz que nós não nos narramos.
Quantas palavras existem para denominar o clitóris? Existem várias palavras para denominar a vagina, o todo. Aquela maçaroca da mulher, onde teoricamente não tem nada para ver, porque ela é oculta, porque ela é cheia de dobras. E quantas palavras existem para denominar o órgão sexual masculino, o pênis, o pau, enfim, né? Essa falta de vocabulário é também uma falta de conhecimento. Hoje eu sou uma mulher de cinquenta anos e vivo a mesma coisa entre as mulheres da minha geração do que vivi na maternidade, em que nós somos muito pouco sinceras umas com as outras em relação ao que estamos vivendo. Tem uma menina que fala na internet, ela chama Jout Jout Prazer, é uma gracinha ela, uma garota de vinte e poucos anos. Tem um dos vídeos em que ela diz nove verdades que vocês homens não sabem a nosso respeito. E tem um momento em que ela diz uma coisa muito divertida: vocês acham que, quando esporream dentro da gente, a gente absorve aquilo, a gente guarda essa substância preciosa, né? Não! Derrama e a gente vai para o banheiro com aquilo escorrendo perna abaixo (risos) e fazendo glupt glupt! E depois senta e tem que dar uma apertada para aquilo terminar de sair (risos)!
E aí ela começa a contar algumas coisas a respeito do que acontece quando uma mulher está em uma circunstância pública qualquer e de repente ela sente que, ups, baixou aquela mensruação violenta e ela tem que continuar (risos) e ela está pensando passou, passou, desgraça passou e aquilo borboreja (risos)! Ela começa a falar e aquilo é muito assustador! Uma mulher falando dessas coisas…
Está se expondo… Está se expondo! É que, na verdade, ela está fazendo uma coisa que é uma afronta. Por isso, a Virgínia Woolf quando fala do que é uma mulher escrevendo, ela vai falar que a mulher sempre esbarra. Como se fosse alguém que jogasse o anzol nas águas profundas do seu próprio inconsciente em busca do peixe grande, daquele peixe que tem a ideia que vai lhe trazer o fio da narrativa. Quando a mulher finalmente fisga o peixe, ela sente que o anzol trava, que bate em alguma coisa dura. E a Virgínia diz: é como se existisse algo que a gente não pode dizer. E esse algo que a gente não pode dizer em boa parte é porque não existe um discurso sobre a nossa natureza.
Outra coisa que essa menina, a Jout Jout Prazer, conta: que a gente sempre solta uma melequinha e que esta melequinha deveria ser estudada pelas pessoas que criam tintas, porque não há calcinha que fique imune à marca da melequinha, as nossas calcinhas sempre estão um pouco manchadas, né? E que, bom, isso faz parte de nós. Então, essa menina de 23 anos é uma coisa que, puxa, para mim que tenho 54, eu não consigo imaginar uma mulher da minha geração dizendo isso na internet!
Enquanto os homens têm um corpo todo narrado – eles se medem, eles têm parâmetros –, o nosso corpo não tem discurso. Há algo na nossa sociedade que transformou todos os fenômenos que provêm do corpo da mulher em coisas muito assustadoras. Há algo na mãe que é muito assustador. Acho que a gente pode dizer que faz parte de todo o processo de opressão da mulher, ok, é! Mas, por que a gente foi tão calada durante milênios? Por que a gente aceitou durante milênios os bastidores? As primeiras mulheres feministas, eu não sei qual foi a pior oposição que elas enfrentaram, se a dos homens ou a das suas pares. Vale a pena ler um livro belíssimo, um dos primeiros livros feministas, que é A Letra Escarlate. Essa mulher, que dizem ser a primeira personagem feminista da história do romance, ela é uma mulher que enfrenta a fúria de toda a cidade. Porque ela detém segredos. Ela detém segredos de homens e de mulheres. As mulheres cultuaram esses segredos junto com os machos dominantes durante milênios.
É duro dizer, porque nós fomos horrivelmente oprimidas, muito maltratadas, mas tem uma colaboração nossa que ainda é muito presente quando as mulheres gostam de dizer: ah, eu tenho nojo de feminista, eu não sou feminista, eu sou feminina, eu não sou que nem essas mulheres que queimam sutiãs – aliás nunca houve uma queima de sutiãs. Foi uma coisa simbólica, um ato onde alguns sutiãs e espartilhos foram exibidos no meio de uma passeata e talvez um tenha sido queimado. Mas existe um imaginário de que existiu uma grande fogueira de sutiãs onde as mulheres, então, exorcizaram o que é da ordem do feminino.
A gente escuta uma série de discursos onde é vergonhoso para muitas mulheres ser feminista e aparentemente contraditório com ser feminina. A gente percebe nas próprias mulheres uma dificuldade muito grande de lidar com o que é da ordem do feminino. É muito fácil nos neutralizarmos e, digamos, de alguma forma nos encaixarmos no discurso masculino a nosso respeito. Entrar em uma espécie de apagamento de si.