Por Lívia de Souza
Lívia é advogada, é mestra em Ciências Criminais. A entrevista feita por Angélica Kalil em 2015 está no livro Você é feminista e não sabe, de sua autoria e da ilustradora Mariamma Fonseca. Confira.
Qual é a principal violência sofrida pela mulher? São várias formas de violência, a gente não pode falar em uma principal. São violências diversas e tratamentos diversos. Atualmente, no Brasil, eu acho que a violência doméstica e a violência física têm sido combatidas. O Brasil de fato tem feito esforços para combater a violência doméstica, existe uma lei, a Lei Maria da Penha, para isso. Mas várias outras formas de violência são invisíveis ainda, ao grande público. Eu costumo falar que toda mulher, ainda que não tenha sofrido violência doméstica, e a gente espera que grande parte das mulheres não tenha sofrido, toda mulher tem uma experiência de violência, é uma experiência quase que cotidiana. Aquela sensação da mulher andar em uma rua e ver três homens caminhando em sua direção. O temor que a mulher sente, acho que só uma outra mulher tem essa percepção. Ela pode ser violada, ela sempre se sente como uma vítima em potencial. Tudo isso é violência. A gente tem que pensar na violência de uma forma muito mais ampla. A violência acontece quando se é tratada de maneira desigual, quando não se é convidada para certos programas, quando, no mercado de trabalho, não se é vista da mesma forma, quando a mulher precisa se enquadrar em alguns tipos. Isso não acontece com os homens. São papeis muito mais crueis para as mulheres do que para os homens e tudo isso também é uma forma de violência.
Por que é importante que a mulher conheça os seus direitos? É importantíssimo que ela conheça, mas eu acho que essa ideia de conhecer os direitos é mais além do que conhecer o estritamente legal. Devemos pensar em direitos de uma maneira mais ampla, pensar que eu sou cidadã, que eu tenho direitos iguais aos dos homens, que eu tenho direito de ir e vir, que a cidade é minha, que nada dá direito ao homem de violar meu corpo, não só com o toque, mas também com palavras, com ofensas. É importante a mulher se perceber digna de direitos. Ela é cidadã como qualquer homem, se o homem não pode ser violado na rua, a gente também não pode. Então, a gente pensar nesse sentido, de buscar uma sociedade melhor, mas não no sentido estrito da lei, pensar no direito de uma forma mais ampla para que ela se sinta uma cidadã empoderada para isso, que ela reivindique seus direitos, que ela vá às autoridades, quando for o caso, que ela ponha a boca no mundo. A gente fala desses movimentos sociais atualmente na internet, que são superválidos, porque as mulheres estão conseguindo expor a sua dor e encontrando várias outras mulheres que sofreram a mesma coisa. Não é um problema isolado, é um problema social. E é importante que a gente divida isso e marque um território, daqui você não passa, que aqui é meu direito e ele tem que ser garantido.
A Lei Maria da Penha, de 7 de agosto de 2006, tornou crime a violência doméstica contra a mulher. O nome da lei é uma homenagem à cearense Maria da Penha, que ficou paraplégica após seu então marido atirar em suas costas enquanto ela dormia.
O movimento feminista atual, com informações e articulações que se espalham pela internet no mundo todo, vem sendo considerado a quarta onda feminista, ou novo feminismo, que de novo não tem nada. A chamada primeira onda de feminismo começou no século XIX – no Reino Unido e nos EUA – e estava focada nos direitos à propriedade privada e ao voto (sufragismo). A segunda onda, entre as décadas de 1960 e 1980, foi uma continuação da primeira, estendendo as reivindicações para o campo social, cultural e sexual. Na terceira onda, nos anos 90, alguns paradigmas do feminismo começaram a ser questionados pelo movimento. Foi nesta hora que se começou a colocar a necessidade de uma visão interseccional dos direitos das mulheres.
Um mercado de trabalho que segrega a mulher ajuda a perpetuar a naturalização da violência doméstica? A mulher tem muito mais dificuldade de acessar o mercado de trabalho e a questão dos filhos é superimportante, porque em muitos casos as mulheres cuidam de toda a casa. Ainda que elas sejam casadas com o marido, o agressor, enfim, casadas, ou tenham um companheiro, é delas o papel de cuidar do filho, de fazer a manutenção da casa, de administrar toda aquela situação. Aí, o que ela vai fazer com esse filho pequeno? Quando a gente diz assim: saia da situação de violência. Saia para onde? Não é fácil para ninguém acessar o mercado de trabalho, a gente também não pode dizer que é só uma questão de gênero, mas para as mulheres é ainda pior, porque existe uma condição que elas precisam para deixar seus filhos, a sua família, precisam pensar em todo esse conjunto. Acho que atualmente as meninas estão conseguindo acessar muito mais universidades, isso também muda, isso rompe com esse ciclo. Mas durante muito tempo mulher não estudava, mulher ficava em casa, mulher era educada assim: pode até acabar os teus estudos, mas depois vai ficar em casa, vai casar, arrumar um marido e é ele que vai pagar as tuas contas. Como é que vai fazer para reestruturar a vida dessa mulher que a vida inteira foi assim? É importante que a gente exija que exista mais equilíbrio no mercado de trabalho. O trabalho de base as mulheres conseguem acessar, mas trabalhos de maior poder, as mulheres não alcançam, porque ainda tem todo esse estigma – mulher não sabe mandar, mulher é frágl, mulher é delicada. Quebrar tudo isso é algo muito complicado, é um trabalho de formiguinha. Muito além de políticas públicas para isso, a gente tem que pensar em mudar a sociedade. Vem de educação isso, pensar que mulheres também são capazes, elas são lideranças. E não precisam reproduzir esse padrão masculino, não. Mulher pode ser delicada, pode ser sorridente, pode ser simpática e mesmo assim ela vai ser uma ótima profissional
Dados de 2015 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que as mulheres ocupam apenas 37% dos cargos de chefia no nosso país. Em cargos executivos de empresas do setor financeiro o número é bem menor: são 10% da força de trabalho.
A violência doméstica está em todas as classes sociais? A violência doméstica, infelizmente, é muito democrática. Não tem classe social, não tem cor, não tem nada. O único diferencial, e é um diferencial considerável, é que uma mulher que tem poder aquisitivo pode procurar uma rede própria de apoio, tem acesso a um psicólogo, vai ter como contratar um advogado. E uma mulher que não tem esse recurso vai ter que procurar uma delegacia, vai depender da defensoria pública, o serviço de psicólogo vai ser aquele do estado, são diferenciais importantes. Se você pensar na questão dos filhos, por exemplo, uma mulher de classe média tem como articular sua vida, pensar em um cuidado para os filhos, pois ela vai ter que sustentar eles, independentemente do marido, ou do companheiro, enfim. Mas é um mal comum. As pessoas dizem: ah, eu não entendo, como é que pode, ela tem um bom emprego, ela poderia sair disso, não sai porque não quer. Não é assim, é um vínculo emocional, psicológico com aquela violência, é uma coisa tão profunda, é muito além do dinheiro. É uma construção social de que a mulher precisa daquele homem, aquele homem é o provedor dela, tem uma relação de afeto com o agressor. Não dá para ser racional, ele está te agredindo, acabou aqui o afeto, não funciona assim. São vínculos muito complexos. Quando a gente fala de violência doméstica, muito antes do serviço de polícia, do serviço judiciário, deveria vir a assistência psicológica a essas mulheres, pois elas estão extremamente fraglizadas. Eu já trabalhei em um centro de referência onde nós atendíamos mulheres vítimas de violência e elas têm o tempo delas. Às vezes eu via uma situação horrível de violência, mas não adiantava eu fazer nada se aquela mulher não se sentia empoderada o suficiente para acabar com aquela situação, isso independentemente do poder aquisitivo dela. Claro, em situações com menos poder aquisitivo, isso seria um fator que dificultaria, mas nunca é isolado, não é simplesmente: ah, eu não tenho dinheiro. É: eu não tenho dinheiro, eu não sei o que eu faço, minha família não me apoia. Agora saiu no jornal que uma soldado levou um tiro do ex- companheiro dela, que era muito agressivo, todo mundo sabia, mas ela tinha vergonha de pedir uma medida protetiva contra o agressor. Ele deu um tiro nela, ela está hospitalizada, até onde eu sei, e matou o filho de sete anos de idade. Então, é para se pensar em como a violência é uma coisa complexa, porque ela tinha porte de arma, ela poderia até se defender disso, poderia acionar a polícia, ela teria uma rede de fácil acesso, mas não. Não é lógico, não é racional. É um problema social muito complexo, o machismo é muito forte na nossa sociedade.
Durante muito tempo a gente ouviu: em briga de marido e mulher não se mete a colher. Eu lembro de na minha infância escutar brigas de um casal de vizinhos e é problema deles, não é nosso. Essa é a visão que a gente precisa mudar. A vítima de violência está em uma experiência de solidão, ela tem dor, ela sofre muito com aquilo e ela está muito sozinha. Por isso, temos que pensar em políticas públicas mais abrangentes. E muito mais além da punição, da cadeia para o agressor, mas pensar como a gente vai fortalecer essa mulher para que ela consiga sair dessa situação de violência e não entrar em outra.
Qual é o caminho mais urgente para aumentar o empoderamento da mulher vítima de violência? Os centros de referência de atendimento às mulheres teriam que funcionar muito bem para uma mulher vítima de violência realmente encontrar um lugar onde ela se sinta abrigada. Que tenha atendimento psicológico, serviço social e jurídico. São esses três profissionais que ela deveria encontrar ao menos para se sentir fortalecida. No momento em que ela sabe que vai ser acolhida em algum lugar, que ela pode ter o acompanhamento de uma psicóloga, de uma assistente social para reformular a vida dela na questão financeira, ajudar a pensar em como conseguir um emprego, e também jurídico para entender quais são seus direitos no momento em que quiser tomar uma atitude, ter uma estrutura para ela, isso é um primeiro passo. Ter um lugar de acolhimento com um acolhimento real e não fictício. Tem um psicólogo para daqui a dois meses, não, daqui a dois meses não serve, a dor é agora e ela precisa ser resolvida.
E como a gente pode incluir o homem neste trabalho? Especialmente pela educação. O primeiro passo para acabar com a violência, mas que é um passo muito longo, é mudando a educação. Pensando nos meninos também como cuidadores, como afetivos, não ter essa divisão clara de frágil e agressivo. As mães falam para as filhas: menina bonita não corre, menina bonita não reponde. A gente está criando uma vítima. A gente está dizendo: você é frágil e precisa de alguém para ser defendida. E os homens também, homem brigando é bonito: ah, é uma briga de pai e filho, menino é violento mesmo. Banalizar a violência não é solução para nada, é preciso pensar em uma educação mais igualitária em que as mulheres também se sintam empoderadas e dignas. Então, repensar a educação é o primeiro passo para a gente colocar os meninos nessa conversa. Mas, além disso, é discutir feminismo com meninos: vamos sentar aqui e conversar sobre feminismo. Eu gosto, quero muito que meninos falem sou feminista, que bom que você é feminista, a gente agradece! E para além do discurso, são as práticas, porque tem menino que na fala diz que é feminista e, quando chega em um grupinho de oito meninos adolescentes, passa uma menina e: ah, gostosa! Não, não dá, é feio (risos)! Tem esse comportamento grupal para enaltecer o que a gente entende como masculinidade, essa construção horrível que tem do que é masculino e do que é feminino. Os meninos sofrem, não na mesma medida que as meninas, mas também sofrem com o machismo, porque são os papéis em que eles têm que se enquadrar. Eu conheci o caso de um menino, um menino criança, que queria dançar. E ele teve que sair do colégio quando começou a dançar, porque chegava a apanhar dos colegas porque dançava. Ele estava violando aquele código masculino do que se espera de um homem. Tem que debater, eu acho que os colégios também têm um papel superimportante nisso de parar com essa ideia assim: educação física de meninas tem dança, educação física de meninos tem futebol. A gente já cria uma divisão horrível e cruel, porque é isso, as meninas são delicadas e os meninos são agressivos. São esportes, o esporte é neutro, a educação é neutra, pensar em um termo neutro de uma educação mais libertária. E nisso dá para colocar menino, menina e toda a sociedade junto.