Por Djamila Ribeiro

Djamila é mestra em filosofia política. Entrevista feita por Angélica Kalil em 2016, que está no livro Você é feminista e não sabe, de sua autoria e da ilustradora Mariamma Fonseca. Confira.

Por que o pensamento da Simone de Beauvoir é tão importante para o feminismo? A Simone de Beauvoir acaba sendo muito importante, porque ela está na filosofia pensando uma filosofia da condição feminina. E isso em 1949, quando ela lança O Segundo Sexo. Então, acho que pelo pioneirismo dela.

E é bom lembrar que ela está muito anterior à teoria feminista. As pessoas associam O Segundo Sexo ao feminismo, mas quando a Simone de Beauvoir lançou este livro ela era uma filósofa pensando a condição feminina. Ela ainda não se entendia como feminista, ela ainda não tinha se percebido como feminista. Ela fez um estudo aprofundado da condição da mulher. E aí o livro dela influencia depois muitas pensadoras que, a partir da década de 1960, começam a pensar a teoria feminista. Por isso que eu acho a Simone de Beauvoir interessantíssima, porque ela só vai se entender como feminista depois, na década de 1970, quando ela vai realmente militar, ela sai às ruas, ela vai começar a apoiar os movimentos, ela vai panfletar. Naquele momento, ela ainda não era, mas o livro dela foi tão importante que acabou sendo abraçado pelo movimento feminista como um marco. Quando ela lança ainda não tem essa posição política tão definida assim. Eu acho importante a gente colocar a Beauvoir não nesse registro da teoria feminista, O Segundo Sexo é anterior, mas a gente já vê como ele é importante, como ele traz contribuições que a gente usa até hoje e acha atual.

Em termos acadêmicos, o livro é muito importante, porque a Beauvoir rompe com uma neutralidade epistemológica que existia até então de que você escrevendo precisa manter uma distância, você não pode tomar partido. E ela toma partido. Ela é muito importante, porque ela rompe com isso. Ela está falando da condição da mulher a partir do lugar de mulher que ela ocupa e isso é um marco muito importante nas ciências. Quando a gente está falando, nada é isento de ideologia. Por isso que ela foi extremamente criticada e massacrada na época do lançamento. Ela foi para o index da Igreja Católica, ela sofreu ameaças de morte, ela foi extremamente atacada na época, porque ela é uma mulher pensando a condição da mulher. O primeiro volume é um volume muito mais teórico, mas no volume dois ela está falando de experiências concretas de mulheres, tanto que se chama O Segundo Sexo – A Experiência Vivida. Ela está falando de experiências, ela está falando da realidade de mulheres e se colocando. Eu acho que ele traz um ganho enorme, porque a gente começa a entender como é que as imposições da sociedade funcionam, ninguém nasce tendo consciência da opressão que sofre. “Não se nasce mulher, torna-se” – as pessoas às vezes deturpam o que ela quer dizer. Ela quer dizer que, quando a gente nasce, já tem toda uma construção do que é ser mulher, você nem teve chance. Você nasceu e já tem um destino ali para você: você vai ser mãe, você vai ter que casar. E esse “torna-se” é nesse sentido de como isso é construído socialmente e é imposto para nós em uma condição de destino. Ela ter definido o gênero como construção social, que depois serve de base para a teoria feminista e para tudo que a gente pensa em relação a isso, é importantíssimo e extremamente atual.

Ela parte da pergunta: o que é ser mulher? Uma pergunta aparentemente simples, mas que na verdade tem uma carga muito grande, sobretudo porque existem essas imposições, esses valores criados sobre o que é ser mulher, sobre o que se espera da mulher.

Para mim, um insight muito forte que ela dá é o de mostrar a condição da mulher como o outro, você pode falar sobre este conceito? Este conceito da categoria do Outro é um conceito bem interessante em que ela fala o quanto a mulher não é vista por ela mesma, ela é sempre o Outro do homem. Ela é sempre aquela que é vista em detrimento do homem, ela não é vista como sujeito. É muito interessante como ela constrói essa categoria, ela dá vários exemplos. Ela fala: se você chega em um país estrangeiro, o estrangeiro é o outro para você, mas também você vai ser o outro para o estrangeiro, tem uma reciprocidade aí. Entre a mulher e o homem, ela fala que essa reciprocidade não existe, porque o homem sempre olha para a mulher colocando a mulher nessa condição de objeto, e a mulher não consegue ter essa reciprocidade do olhar do homem. A mulher é sempre vista como submissa, como subalterna, como menor que o homem, como inferior ao homem. Se a gente não está no mesmo patamar, não dá para ter reciprocidade.

Em relação à mulher negra, por exemplo, tem uma outra estudiosa que é a Grada Kilomba, que faz um outro estudo da categoria do Outro que eu acho bem legal. Ela fala que a mulher negra é o outro do outro. A Beauvoir fala que a mulher é o outro, mas pensando em uma mulher branca com um homem branco. E aí, a Grada Kilomba vai falar: bom, mas a mulher negra é essa dupla antítese de masculinidade e branquitude, ela realmente não tem reciprocidade nem do homem branco, nem do homem negro, nem da mulher branca – ela é o outro do outro. Eu acho que a Grada Kilomba sofistica um pouco mais essa categoria da Beauvoir para mostrar que para a mulher negra essa situação de alteridade é muito mais difícil.

A Simone de Beauvoir usa um sujeito mulher universal – acho que é uma crítica válida que até a Butler faz a ela, as feministas negras também fazem, que ela fala da mulher pensando na mulher europeia. Mas, no livro, ela fala da questão racial e fala também da questão dos judeus. Não chega a aprofundar, mas fala por conta da aproximação que teve com o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos. Teve um contato muito direto com o Richard Wright, que é um ativista negro norte-americano, e a partir desse contato ela começa a falar sobre a questão racial – uma coisa que aqui no Brasil a gente não fala e que eu só fui saber quando estive em uma conferência nos Estados Unidos e vi pessoas usando O Segundo Sexo para falar sobre a questão racial. Realmente ela fala disso, mas a crítica das feministas negras é de que ela fala do homem negro, mas não fala da mulher negra. Ela universalizou também. Mas ela fala – o que eu acho que é bem à rente do seu tempo, visto que existem feministas que vieram depois e não falam disso.

A gente precisa se colocar lá no lugar onde ela estava. Sim. Ela escreveu um livro chamado Djamila Boupacha, que é o nome de uma argelina que foi violentada pelo exército francês na época que a França invadiu a Argélia. O exército francês violentou essa moça, inclusive com garrafas de vidro, e ela escreve um livro relatando todas as violências que o exército francês cometeu com essa mulher. Usou um espaço que tinha de privilégio para dar voz a uma mulher que não teria voz. Inclusive a Simone de Beauvoir foi perseguida por conta disso, teve que fugir de Paris durante um tempo por ter se posicionado contra a invasão da Argélia.

A Simone de Beuvoir foi ficando cada vez mais ativista no decorrer da vida? Ela foi ficando cada vez mais ativista. Tem um livro chamado Simone de Beauvoir Hoje, escrito pela Alice Schwarzer, uma alemã que entrevista a Beauvoir durante dez anos. São dez anos de entrevistas e é muito bacana, porque a gente vai vendo essa diferença da Beauvoir. Ela mesma fala que não se considerava feminista, que depois que foi ser feminista. E nesse livro ela usa uma frase muito bacana: não seja a mulher desculpa que eu fui. Quando iniciou a carreira como escritora, ela tinha uma entrada nos círculos privilegiados, porque era uma mulher de classe média, era companheira do Sartre, o Sartre também era famoso na época, então ela achava que era só querer as coisas. Depois ela mesma diz: eu tenho consciência de que eu era privilegiada, de que eu estava em um meio onde eu conseguia circular e nem todas as mulheres têm as mesmas oportunidades que eu. Vai tomando consciência disso ao longo da vida e se torna cada vez mais militante, fala que as mulheres precisam ser feministas, que as mulheres precisam se unir em uma luta, que as mulheres precisam ter solidariedade umas com as outras. É muito interessante perceber o quanto ela vai ficando cada vez mais militante.

É o mesmo discurso que a gente tem hoje, parece que temos ainda que bater nas mesmas teclas. É, batemos nas mesmas teclas (risos), mas o bom é que ela pelo menos se permitiu e muitas ainda, porque conseguem ocupar determinados espaços, acham que as outras todas conseguem. É legal que ela tinha essa consciência de classe, tanto que ela fala que o feminismo não pode estar descolado da luta de classe. A Beauvoir diz que não tem como ser feminista sem pensar a questão de classe, sem ter solidariedade entre as mulheres, sem que as mulheres que têm privilégios entendam que existem outras que não têm. E que, enquanto a gente não tiver esse olhar solidário, a gente não consegue avançar.

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