Por Ane Sarinara

Ane Sarinara é professora de história e integrante da Coletiva Luana Barbosa.  Entrevista feita por Angélica Kalil em 2017, que está no livro Você é feminista e não sabe, de sua autoria e da ilustradora Mariamma Fonseca. Confira.

Uma mulher lésbica é uma afronta? Ela é a maior delas, né? Antes mesmo do feminismo, a mulher lésbica já estava ali. Obviamente que você não vai achar amplamente na história, porque ela não pode existir. Mulher que não está a serviço do homem tem que ser silenciada e exterminada, inclusive. O mundo machista diz para o homem que ele pode tudo e aí ele tem ali na frente dele uma mulher que diz para ele que não. Ele entra em choque, entra em pânico. Eles têm medo dessas mulheres, eles têm medo da gente. Então, começam a atacar de todas as formas. Seja de forma física, psicológica…

Ou até mesmo através de um estupro para a mulher aprender a gostar de homem na marra. Segundo a lógica deles, se é que eles têm alguma lógica, é o que a gente fala que é o estupro corretivo. Como a gente não se relaciona com homens, eles tentam forçar essa relação, literalmente. Isso é bem grave principalmente para as lésbicas que estão em maior vulnerabilidade, que são mulheres que estão na rua, que estão na periferia, em lugares onde falta segurança.

É muito diferente você ser uma lésbica ali na Paulista e você ser uma lésbica lá no meio da Cidade Tiradentes, Grajaú, Brasilândia. Tem que entender que são mulheres diferentes. Mulheres do centro, mulheres da periferia…

…mulheres que vivem em uma região urbana, mulheres que vivem em uma região rural. Às vezes eu faço alguns posts na rede social e pergunto algumas coisas e aparecem as meninas do interior. Elas falam: eu não posso ter a minha família aqui no meu Face, porque se eles souberem o que eu estou falando, posso ser expulsa de casa, aqui no interior é diferente. Muita gente não fala como é ser lésbica no interior, né? Lá no fundão, lá na caatinga, no Norte do país. São regiões diferentes, têm costumes diferentes. O feminismo fala: nós somos mulheres diferentes. Também existem lésbicas diferentes, situações diferentes. A gente tem que ter isso em mente para não invisibilizar e nem colocar todo mundo na mesma farinha – porque aí você acha que está ajudando e, na verdade, não. A gente tem que entender qual é a nossa situação e aprender a ouvir a situação da outra. Uma coisa que está faltando na militância, as pessoas se ouvirem. A gente não escuta, a gente quer muito colocar o que a gente sabe, ou o que a gente acha que sabe e entende, como se o Brasil fosse São Paulo. A gente tem que aprender a ouvir as outras regiões, até para conseguir ajudar.

O termo lésbica faz referência a Lesbos, ilha do mar Egeu. Foi lá que, por volta do ano 630 a. C., nasceu a maior poetisa grega do gênero lírico. Além de escrever, Safo também abriu uma escola para mulheres, onde as alunas aprendiam poesia, dança, artes e música – e também se relacionavam amorosamente entre si. Pouco restou de sua obra, quase toda queimada no período de caça às bruxas na Idade Média.

Durante este tempo sombrio e ainda não suficientemente estudado, foi levado a cabo um verdadeiro genocídio contra o sexo feminino na Europa e nas Américas. As mulheres consideradas bruxas tinham conhecimentos que ameaçavam o domínio masculino. Eram médicas, astrônomas, botânicas, líderes comunitárias. Para confessarem absurdos como copular com o diabo e aprender feitiçaria com animais falantes das florestas, eram submetidas a torturas brutais e depois queimadas vivas em fogueiras montadas em locais públicos.

Em abril de 2016, Luana Barbosa morreu em Ribeirão Preto, interior do estado de São Paulo, cinco dias após ser internada devido ao espancamento que sofreu. Conforme o atestado de óbito, a causa de sua morte foi isquemia cerebral aguda causada por traumatismo crânio-encefálico. Deixou um filho de 14 anos e mais uma família devastada pela violência do preconceito.

O quanto outras formas de opressão potencializam a violência contra a mulher lésbica, como aconteceu com a Luana Barbosa? Olha, eu aqui como mulher negra, as pessoas vão dizer: ah, tem o racismo também. Isso já é posto, mas tem outras coisas. Eu sou uma mulher que performa feminilidade. Então, se eu quiser passar batido, eu passo. Se eu não falar nada, ninguém vai saber, ninguém vai perceber. No caso da Luana, não. A Luana é uma mulher negra, periférica, que também não performa feminilidade: ah, ela se veste como homem – que é ainda o que muitas pessoas entendem, inclusive o Estado entende isso. Então, a Luana, além de ser periférica, ser lésbica, ser negra, não performa feminilidade. Isso deu brecha para os policiais tratarem ela – claro, se fosse um homem também não era para ser tratado assim – de forma violenta.

Para quem não sabe, a Luana estava em uma moto com o filho, estava levando o filho para um curso, e aí pararam ela e ela falou que era mulher e que eles não poderiam revistá-la. E é isso, eles não podem. Começaram a tratar a Luana de forma agressiva, ela obviamente com medo tentou se defender também, falando: não, eu sou mulher, eu sou mulher. Parece que ela até tirou a camiseta para mostrar que era mulher, porque eles não estavam acreditando, então ela teve que tirar a camiseta. E aí começaram a espancar ela. Segundo relatos, deram muitos chutes, bateram muito na cabeça, tanto que ela teve traumatismo craniano.

Na frente do filho? Sim, na frente do filho. E depois da ação, quando os vizinhos começaram a gritar e chamaram a família, ainda invadiram a casa da família. Ela não foi levada para o hospial depois direto, o que deveria ter sido feito. Parece que ainda levaram ela para a delegacia, o atendimento também demorou. O exame de corpo de delito para comprovar as agressões, se não me engano ela foi agredida em uma sexta-feira, só foi feito na segunda ou na terça-feira.

Ela estava hospitalizada e toda vez, quando iam no hospital perguntar ou tinha algum trâmite, falavam assim: quem é a agressora dos policiais? Tratavam ela dessa forma. Muita gente justificou a agressão porque a Luana já tinha passagem. O Brasil tem essa mania, porque você já cometeu um erro, então está certa a abordagem violenta.

Nos jornais, todos colocaram assim: a suposta agressão. A Luana Barbosa estava internada com traumatismo craniano por agressão, e não por uma suposta agressão – houve uma agressão. O jornalismo brasileiro também é extremamente lesbofóbico. Quando uma mulher lésbica morre, não colocam que um dos motivadores foi a lesbofobia. Os casos de assassinatos de mulheres lésbicas não são levados para frente. Está claro, está evidente, está escuro ali que é uma lesbofobia, mas eles evitam até de colocar nos BOs, no registro da denúncia. Então, a gente não existe.

Muitas pessoas falam para mim: Ane, você precisa parar, se você não parar, você não vai conseguir. Só que, se todo mundo parar, aí é que a gente não consegue mesmo. Mas é muito difícil dizer isso assim.

(pausa)

Você apanhar. Você perder o seu emprego, porque você fez o certo. Quando você defende uma aluna de um abuso, as pessoas dizem para você: você não deveria ter feito isso, você não deveria ter ins- truído a mãe a ir a uma delegacia e denunciar. E você ter que escolher ficar ou cair fora porque vão tirar o seu diploma. Quando você sofre lesbofobia pesada na escola de pessoas que deveriam ensinar as crianças a não serem violentas com você. Os profissionais da escola dizem que você é a razão do fim do mundo. Isso é muito complicado. Isso não existe em livro, podem falar o que quiserem, mas o sistema é muito, muito mais pesado do que parece.

Eu perdi o meu emprego, eu não estou mais trabalhando em escola por questões de racismo institucional, de lesbofobia e por eu ser mulher. Você percebe que o tempo todo o que as pessoas vão falar para a gente é: pare, não vá. Porque você vai ser engolida pelo sistema e realmente a gente vai ser engolida pelo sistema, a gente vai levar porrada do sistema. Mas eu e as minhas colegas, a gente escolheu não parar.

A gente sabe o que vai acontecer, eu posso ser a próxima Luana, sim. Eu moro em uma periferia, eu ando nas ruas sozinha, eu não conto com o Estado para isso. Eu aprendi nesse final de ano que não, o Estado não está aí para mim, eu não tenho direito civil, eu não tenho direito a nada. Quando eu falo que sofri lesbofobia, as pessoas acham que é mimimi. Quando eu falo que sofri racismo, me pedem provas – como se alguém fosse assinar que é racista. Isso não existe, porque a pessoa sabe que é crime, mas mesmo assim ela comete. E o Estado reforça isso de forma muito, muito bruta.  Então, você vai ser tirada do mercado de trabalho, sim. Você vai caminhar sozinha, sim. E as únicas pessoas com quem você pode contar são pessoas como você, pessoas que estão com o psicológico tão ferrado quanto o seu. Me falam: ah, mas vocês podem se tratar e tal. Amiga, a gente tem outras coisas, entendeu? Eu tenho que pagar minhas contas, tem mina lésbica aí que está sozinha, sofrendo ameaça do marido e ela tem que sustentar o filho, ir para a faculdade, tem que tentar melhorar. A gente não conta com a família, grande parte não conta com a família, e é isso que as pessoas não percebem.

Não tem como você falar de uma forma positiva, quando falam para mim: as coisas estão melhorando. Eu sinto muito dizer, eu não consigo ser positiva nesse aspecto, não há melhora nisso. Principalmente para as mulheres lésbicas e lésbicas que estão vulneráveis. Eu sou acadêmica? Eu sou acadêmica, mas, ainda assim, na periferia eu sou uma mulher lésbica da periferia. O meu diploma não está na minha cara, eles não querem saber, ninguém vê isso.

Tem muita mulher ainda para trás. O feminismo parece que avançou, mas avançou para algumas mulheres. Para a maioria delas, não. Tem muitas mulheres aí na rua ainda que nem sabem o que é, não sabem os direitos que adquiriram, estão batendo cabeça. Uma coisa que a gente tem que prestar a atenção – melhorou para qual mulher?

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