Por Kerexu Yxapyry
Kerexu Yxapyry é líder comunitária no Mbya Guarani do Morro dos Cavalos (SC) e professora. Entrevista feita por Angélica Kalil em 2017, que está no livro Você é feminista e não sabe, de sua autoria e da ilustradora Mariamma Fonseca. Confira.
Que preconceitos a mulher indígena enfrenta? Por ser mulher já é um preconceito que existe. Eu encontrei de dificuldades e preconceitos, nessa luta maior de liderança, a falta de capacidade das pessoas de ver em você a habilidade de resolver, de pensar algo, de fazer algo. Eu me deparei com, vamos dizer assim, vários tipo de seduções para conseguir subir patamares. Dentro da política, se não é uma sedução de homem tentando te seduzir, é o dinheiro para você conseguir o poder, né? E se você não aceita nem a sedução de homem, falando de gênero, nem de dinheiro, existe aquela inversão do preconceito e da discriminação que é desfazer de você, porque você não é uma pessoa capaz. Eu me deparei muito com isso nesse mundo: se você concorda, você pode até avançar, mas, se você discorda e quer andar com as próprias pernas, então você não é ninguém. Eu me deparei muito com esse tipo de dificuldade e com o tempo até de diálogo no meio do mundo dos homens.
Você chegou a ser cacica, é fácil chegar a ser uma cacica? Aqui na nossa aldeia foi a primeira vez o papel de cacica, que é mais voltado para a questão política mesmo. Liderança tradicional a gente sempre teve nas aldeias. Por exemplo, aqui no Morro dos Cavalos, nos anos 1960, passou uma liderança muito guerreira conhecida como Tataxin, em português Dona Aurora, que veio da Argentina liderando o povo guarani, a busca da Terra Sem Males, e ela veio e parou um tempo no Morro dos Cavalos. Ela era a liderança de todo um povo – mas aí falando mais da questão da crença, da religião. No passado e até hoje em alguns lugares existe esse papel da liderança feminina.O meu papel como cacica foi um papel mais político mesmo. Não é tão simples ser indicada como liderança, mas também não é difícil. Existem esses dois lados, a questão tradicional e a questão política, que são duas coisas que às vezes a gente fica discutindo, até refletindo bastante. Quando eu fui eleita cacica, foi uma eleição onde estava toda a comunidade reunida, teve várias indicações no dia para ser cacica e eu fiquei entre três homens que também foram indicados. Quem me escolheu para ser cacica foram as mulheres. Independente de ser uma eleição para cacique, no caso, a mulher é a que fala e o negócio acontece. Então, quando uma mulher aponta algo, geralmente os filhos acompanham. E nesse caso foi assim, as mulheres me indicaram, os filhos me apoiaram, os jovens, os alunos de escola e na maioria também os homens acabaram me escolhendo.
A Terra Sem Males faz parte da mitologia guarani. Nos fala sobre os deslocamentos territoriais dos povos guiados pela ancestralidade na busca por um mundo melhor.
Foi boa a experiência como cacica? Foi. Para minha vida foi bom e acredito que para o meu povo também. Nesse período de cacicado eu consegui entender muito com as coisas que vêm de fora – porque sempre tem alguém lá lutando pela gente, mas quando a gente está nesse papel a gente vê que tem muita coisa. Então, foi bom para mim, porque eu pude ver isso e entender também sobre as questões de direitos e as negações de direitos. Essas coisas negativas que vêm muito para cima da gente, eu consegui enxergar isso.
Você acha que sofreu dificuldades a mais por ser mulher? Eu passei por várias coisas. Além de ser mulher, essa questão que eu falei no início que é a parte de você não ser ouvida, de você não ter a oportunidade. Depois disso, uma perseguição muito maior para cima de mim como liderança, para cima da terra indígena do Morro dos Cavalos. Para mim e para a minha família, meus filhos. Perseguição, ameaça de morte, pessoas rondando a minha casa, pessoas atirando na minha casa, pessoas invadindo a terra. Eu passei por vários momentos assim, meus filhos mesmo se forem contar, meus pais passando por esse medo. Em alguns momentos na madrugada, acordar com tiro na porta, levantar sem saber para onde que eu vou agora e esperar que a morte chegue. Minha maior dificuldade nessa luta foi essa parte, principalmente por causa da minha família, dos meus pais e dos meus filhos. Além de ter toda essa ameaça para cima de mim e perseguição, a ameaça mais forte que eu considerei uma tortura psicológica foi a ameaça para dentro da minha família.
Em algum momento você se arrependeu ou quis desisir? No início do ano passado eu acabei entregando de volta para a comunidade esse cargo de liderança – não por eu ter me arrependido, eu continuo liderança na aldeia. Como eu tenho família e preciso manter a minha família, por questão financeira mesmo, como cacica eu tinha que ficar muito fora viajando. Então, eu não conseguia parar muito para manter a minha família, preferi ficar lutando mais aqui dentro, desenvolvendo mais as ações na aldeia e aí alguém que assumisse a liderança e ficasse com esse papel de viagem.
A participação da mulher é importante na luta pelos direitos dos povos indígenas? Eu acho que é importante – vou falar do povo guarani, principalmente. Qual é o papel do homem e qual é o papel da mulher? Para nós, o homem tem aquele papel de base e estrutura, mas a parte sustentável de toda uma aldeia é responsabilidade da mulher. Hoje eu vejo que é justamente nessa parte sustentável que estão as demarcações de terra e de como pensar o futuro para as gerações que estão vindo. Até agora eu acredito que a gente perdeu bastante, porque a mulher não estava junto e tem que estar junto. Eu não digo que a mulher tem que ser a que está lá, mas tem que estar junto, pensando junto, porque ele não vai alcançar o objetivo, o equilíbrio, se um estiver na frente do outro. Então, tem que andar junto.
Eu vejo hoje a participação da mulher de muita importância, por exemplo, nas sementes tradicionais para alimentação, a partir disso já vem a questão da saúde e da educação – que são o que mantém toda a aldeia, toda a sociedade. E o homem é aquela base que segura tudo isso, que vai preparando, que vai lutando, que vai puxando.
Então, hoje eu vejo dentro desse movimento político que nós vemos no Brasil todo que é fundamental a participação das mulheres. Quando a mulher vem para reivindicar um direito ou um valor dela, ela vai justamente falar sobre isso: a questão sustentável, do povo, da família, tudo que ela está gerindo em volta dela.
Uma das atuações de Kerexu é como professora de astronomia indígena. Para o povo guarani, o território não é apenas a terra, mas um todo que une o ar, o sol, as estrelas, a lua, o mar.
o que uma mulher que não é indígena poderia fazer pelas mulheres indígenas? Eu não sei exatamente o que ela poderia fazer para uma mulher indígena, mas vamos pensar em um papel de mulher. Primeiro, para ajudar uma mulher indígena ela teria que entender um pouco daquele valor que aquele povo, em geral, tem. Nesse movimento também do feminismo, que é a luta na questão do direito da mulher, em partes a proposta do movimento eu acho bem bacana, porque ele está dando vozes para as mulheres. Ele está buscando as vozes das indígenas, das quilombolas, de todo mundo, para que essas mulheres consigam se expressar e falar um pouco dos direitos delas.
A mulher não indígena que tem algum suporte que pode estar mostrando a voz da mulher indígena, ela pode ajudar nessa parte, de estar conhecendo e dando vozes.
Dar vozes a outras mulheres é agir com sororidade – palavra muito usada pelos movimentos feministas. Está alinhada ao conceito de união e empatia entre mulheres, já que tem origem no latim soror, que significa irmãs.