Delegado Barbosa foi a agulha que costurou o acordo entre a milícia e os políticos para executar a vereador Foto: Reprodução
No final da madrugada de domingo (24), quando começou a circular nos noticiários a informação que a Polícia Federal (PF) tinha deflagrado a Operação Murder Inc. e prendido três suspeitos de ter mandado matar, em 14 de março de 2018, a vereadora Marielle Franco (PSOL), do Rio de Janeiro, eu me lembrei de uma frase que ouço nas delegacias de polícia desde que comecei na lida de repórter, nos primeiros dias do ano de 1979. “Não existe crime perfeito. Existem crimes mal investigados”. No caso Marielle podemos acrescentar a essa frase a palavra “crueldade”, porque um dos suspeitos presos preventivamente é o ex-chefe de polícia do Rio de Janeiro, delegado Rivaldo Barbosa. Ele organizou dentro da delegacia a cilada em que o miliciano e sicário (pistoleiro de aluguel) Ronnie Lessa disparou do interior do veículo dirigido Elcio Queiroz os tiros que mataram a vereadora e o seu motorista, Anderson Gomes. Também foi dentro da delegacia que Barbosa colocou em andamento a conspiração para boicotar a investigação policial do caso e proteger os outros dois mandantes da execução, também presos preventivamente, os irmãos Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ), e Chiquinho Brazão, deputado federal pelo Rio de Janeiro.
É o que considero a cereja do bolo da crueldade. O delegado tornou-se amigo da família da vereadora, a mãe Marinete e a irmã Anielle, atual ministra da Igualdade Racial, e do seu mentor político, o ex-deputado estadual Marcelo Freixo (PT-RJ), atual presidente da Embratur. Nas entrevistas que concedeu no domingo, Freixo demonstrou a sua indignação com o delegado. O que Barbosa fez é descrito nas delegacias de polícia como “matou e foi chorar no velório”. Faz parte da técnica de investigação de homicídios colocar um policial disfarçado no velório da vítima com a missão de ficar atento à presença do suspeito do crime. No caso de Marielle, o suspeito no velório era o delegado. Não vou discutir a Operação Murder Inc. (o nome refere-se às quadrilhas de matadores a serviço das máfias de Nova York, nos anos 1930), que virou notícia ao redor do mundo e vem ocupando todos os espaços nobres dos noticiários nacionais. Falei sobre o andamento da investigação na sexta-feira (22) no post PF descobriu, cercou e espera a hora para dar o bote em quem mandou matar Marielle? Na segunda-feira (25), li o relatório do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), sobre o caso. Uma leitura que recomendo a todos os colegas, disponível na internet. O minuto a minuto do caso pode ser acompanhado pelo noticiário diário. Portanto, vou focar a nossa conversa na figura do delegado, por entender que ele é a linha que costura toda a situação.
Antes, um comentário que considero necessário. Para os repórteres que não vivem o dia a dia do Rio de Janeiro é difícil entender como as coisas acontecem por lá. Na década de 90 estive duas ou três vezes no Rio, trabalhando na cobertura das ações policiais em busca de traficantes nas favelas. E conversei muito com a turma de Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, quando ele estava foragido na fronteira do Brasil com o Paraguai. Beira-Mar é o líder do Comando Vermelho (CV), facção criminosa com sede no Rio de Janeiro. Conservo as minhas fontes no Rio. Para se entender o que acontece atualmente por lá recomendo a leitura de dois livros: A Fé e o fuzil – Crime e religião no Brasil no século XXI, do Bruno Paes Manso, um jornalista e cientista que tem várias obras sobre as milícias. E Decaído – A história do capitão do Bope Adriano da Nóbrega e suas ligações com a máfia do jogo, a milícia e o clã Bolsonaro, escrito pelo repórter Sérgio Ramalho. Para facilitar o entendimento. Existem atualmente cinco grandes grupos de criminosos: os bicheiros, que implantaram o crime organizado no Brasil, os milicianos, formados por policiais militares da ativa e reserva, e os traficantes, que são ligados aos grandes cartéis de drogas, o CV e o Primeiro Comando da Capital (PCC), com sede em São Paulo, que controlam também a população carcerária, o contrabando de armas e outros negócios ilegais. Essas organizações criminosas são divididas em células independentes. Elas podem se unir ou guerrear pela conquista de territórios. Foi exatamente uma união entre milicianos, políticos e polícia, que tinha como foco explorar a grilagem de terras urbanas, que condenou Marielle à morte, porque ela estava prejudicando os seus interesses econômicos. O delegado Barbosa foi a linha que costurou a união desses grupos. Freixo conhece profundamente essa realidade. Em 2008, ele presidiu a CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), que indiciou 240 policiais civis, militares, bombeiros e agentes penitenciários. Ele foi da Comissão de Direitos Humanos da ALERJ durante 10 anos. Na comissão, Barbosa representava o Estado. Daí vem parte da indignação do ex-deputado com a atuação do delegado nesse episódio.
Na segunda-feira (25), a Primeira Turma do STF decidiu, por cinco votos a zero, manter as prisões preventivas dos irmãos Brazão e do delegado Barbosa. O fato é o seguinte. Barbosa tem uma enorme fileira de crimes que podem complicar muito a sua vida. Por outro lado, por ter sido a linha que costurou toda essa situação que resultou na execução de Marielle, ele tornou-se uma figura importante no episódio. O que o torna um candidato natural à delação premiada. Se aceitará ou não, logo saberemos. E se resolver fazer a delação à PF, pode complicar muita gente importante no Rio e em Brasília (DF). A prisão dos três respondeu quem mandou matar Marielle e por qual motivo. Agora, se eles são as únicas cabeças dessa história é um outro capítulo, que começou a ser escrito pelos documentos apreendidos na Operação Murder Inc. Dias interessantes vêm por aí.
Por Carlos Wagner, jornalista investigativo