Março findava quando andei pelo centro de Porto Alegre pela penúltima vez. Um alerta de temporal extremo evacuou às pressas o South Summit Brazil. Peguei uma carona com a minha amiga e jornalistona Chris Schmitt que cobria o evento de inovação e network, no qual trabalhei como assessora de imprensa. Caminhávamos feito duas comadres abraçadas (de frio) e tagarelando sem parar; lamentando o fim abrupto do expediente e empolgadas com as personalidades interessantes com propostas sustentáveis que encontramos no evento. No meio do caminho, parei na Rua da Praia e fiz a foto que você vê acima. Haverá Futuro?

É o que temos nos perguntado desde 2 de maio, dia dos 80 anos do meu pai, Perciano. Estamos destroçados há 17 dias. Submersos em água e lodo, sem-tetos, memórias e autonomia. Ainda nos faltam luz, água (que ironia), aulas, rotina e perspectivas de dias melhores. Uma avalanche lamacenta invadiu nossos lares, ruas inteiras, empresas, aeroporto, depósitos e estoques. Afetaram e destruíram 461 das nossas 497 cidades. Entraram sem gentileza em nossos museus, lojas, teatros, bibliotecas, escolas, bares, restaurantes, livrarias… Tomaram nossas praças, estádios de futebol, lavouras e dignidade… Levaram nossos animais, trabalhos, livros, remédios, projetos, fotografias, histórias, cartas de amor e o mais precioso: 155 vidas (94 desaparecidos no RS).

Os moradores dos lugares mais altos estão seguros fisicamente. Uma parcela comovente e aguerrida de voluntárias e voluntários atuou incansavelmente para resgatar e salvar vidas e ainda se movimenta ativamente para garantir o bem estar dos 77, 202 mil que estão nas centenas de abrigos espalhados pelo Rio Grande do Sul. O Brasil nos abraçou com solidariedade, ações de todos os jeitos e lugares chegam em caminhões lotados de empatia, multiplicam-se em carinho e campanhas digitais e em milhares de pix, muitos pix. As águas começaram a baixar, o sol aqueceu a nossa fé mesmo com temperaturas menores nos últimos dois ou três dias de céu imenso e azul. A chuva promete nos rondar até o fim do mês.

Ainda sentimos medo, vazio, desolação. Raiva do descaso com o meio ambiente e da falta de manutenção dos equipamentos públicos que poderiam ter minimizado o desespero que vivemos. Há um conflito permanente entre o desejo ardente de agir e o não-fazer que precisa ser apaziguado em nós. Assim é na prática do yoga, no pensamento e na vida, disse a minha amiga, conterrânea e professora de yoga Luciana Brites. Quem não foi diretamente atingido como eu e provavelmente você que me lê, reveza-se em estados emocionais diversos: do altruísmo inspirador e contagiante à melancolia ansiosa e incrédula. Muitos estão exauridos e eufóricos de tanto resgate e trabalho voluntário. É poderoso sentir-se útil em um momento crucial da história amenizando a dor alheia. Realização que muitas vezes não encontramos em nossas vidas, relações e carreiras.

Outras pessoas, grupo no qual me incluo, andaram desnorteadas devorando notícias, oscilando entre o desânimo e a revolta. Um resfriado e uma tosse sem fim foram as minhas desculpas oficiais para não atuar diretamente nos resgastes e abrigos. Mesmo sabendo que não faltará trabalho árduo nos próximos longos meses por aqui, senti culpa, vergonha do privilégio existir em mim e aflição por não estar no front.

Maio de 2024 está avassalador. Motivos não me faltavam para festejar com palavras bonitas e emocionadas as oito décadas de vida do meu pai entre as duas enchentes mais tristes da nossa história. Assim como gratidão por ter uma mãe incrível e ser também uma (um pouco menos incrível) no Dia das Mães mais esquisito de todos. Engoli também alegria de celebrar meio século de vida da Biba, a Bibiana Leite Cruz, uma amigona que acaba de completar 50 anos. Para todos os gaúchos e gaúchas de todos os cantos do RS e do mundo, pai, mãe, Biba, Chris e todos os lugares importantes das nossas vidas; tudo junto, no plural, coletivo, sustentável e diferente… como tem que ser… que sejamos um farol para a mudança. Cheios de amor, coragem e a certeza de que haverá futuro, sim.

Por Mariana Bertolucci

CategoriasSem categoria
  1. Alcimir Richter says:

    Bahhh Mariana texto lindo. Realmente esse momento nos desperta os mais variados sentimentos, mas acredito que o mais profundo deles é o de amor por nosso povo, como nunca, condensado na palavra maior que surgiu em meio às águas…SOLIDARIEDADE.
    Impossível que mesmo a pessoa mais dura não tenha se emocionado e esse sentimento tenha sido despertado. Vamos vencer❤️💪. Um dia será uma lembrança triste, mas que nos ainda mais fortes. Bj grande ❤️

  2. Márcia Vargas says:

    Mari, é impossível não se emocionar (mais) lendo tuas palavras tão bem colocadas em um momento dificil, ou o mais difícil dos últimos tempos, que deixa a pandemia ser algo do passado! Um beijo grande de aniver pro teu pai, queridão e sempre elegante e outro pra tua mamis!! Bjks

  3. Mariana! Muito incrível teu texto! É como nos sentimos… de luto pelo nosso Estado amado. Não é hora de apontar culpados mas sim de ajudar o outro. O voluntariado representou e ainda fará a diferença por muito tempo, até que possamos nos organizar e voltarmos as nossas rotinas, por enquanto é impossível.
    Um beijo carinhoso no Perciano por esta data linda! Sim, tivemos um Dia das Mães que ninguém fez questão de comemorar, estamos de luto! Muitos beijos🥰🥰🥰

  4. Emílio Papaléo Zin says:

    Cumprimentos à Mariana que, com singular poder de síntese e conteúdo, reproduziu nesse belo texto a análise e o sentimento que todos nós, cada um ao seu jeito, estamos, incrédulos e tristes, vivenciando. De quebra, a mensagem sinaliza uma esperança que, afinal de contas, é o que nos impulsiona para frente. Muito orgulho de ti, Emily!

  5. Carolina Linhares says:

    Mari, que lindo texto amiga! Emocionante. Tuas palavras tocam nosso coração nesse momento em que estamos passando e nos dá força para seguirmos em frente.

  6. Hellô Campos says:

    Mari querida! Seu texto maravilhoso me tocou bem fundo novamente! Essa sensação de impotência e de uma tristeza profunda, me acompanha há 17 dias! Em meio à destruição e sofrimento de quem perdeu tudo e seus entes queridos, a única beleza é ver que nós, gaúchos, somos um povo forte e unido! Que Deus abençoe à todos nesse momento!❤️

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.