Era o clichê de sua vida. Era sua estratégia. Gostava de frequentar a noite desacompanhado. Sua preferência eram os bares. Mais do que os bancos, ele gostava dos banquinhos. Dos balcões. Lá fazia sua morada. Botava sua melhor cara triste e pedia a cerveja mais barata da casa. Seu ritmo de beber era controladamente lento. Irritantemente devagar. Não era só para economizar. Fazia parte de seu show. Aparentar ares de ébrio quando estava muitíssimo sóbrio. Ali havia uma vantagem dupla. Ao passo que economizava e provavelmente estaria mais são do que prováveis interlocutores.

Para ele tanto fazia se fosse abordado por homens ou por mulheres. Só tentaria ir pra cama com elas. Mas sexo não era a única experiência buscada com aquele agir. Umas bebidas de graça não iam mal. Inevitavelmente alguém sempre ia falar com ele. Nunca entrara um bar sozinho e deixara o lugar sem falar com ninguém. Podia até ser o dono do bar, o encarregado pelo chope, alguém o interpelava. Não era nada incomum. Ele não era extremamente magnético ou carismático. Mas notara com o passar de sua vida que a curiosidade das pessoas sempre vence.

Ah, quem poderia resistir àqueles olhos de cachorro perdido? Aquele ar de inteligência legitimamente comprada. A dor no peito que não fazia grande questão em esconder. Era o tipo de personagem que queria afago. E, normalmente, era isso o que recebia. Sempre haveria alguém para perguntar:

– Está bebendo sozinho?

Ao que ele replicaria sem demonstrar o entusiasmo que sentia, – sim. Causando aquela expectativa ao outro de se estaria incomodando o momento do outro sujeito ou era a vida que o fizera assim. A partir daí o roteiro mudava bastante. Mas, geralmente, vinham muitos por quês na esteira do sim. E aí era o momento de mostrar um pouco melhor com que cartas resolveria jogar naquela investida. Contar uma história triste é uma arte que poucos dominam de fato. Saber equilibrar o tom sem criar fastio alheio mas, ao mesmo tempo, compelir ao ponto de torna-lo senhor da atenção do outro. Com isso, comandando confortavelmente a conversa.

Podia bancar também o tipo que resolveu ser antropólogo de bar por um dia, que não era de seu costume beber sozinho, mas pretendia viver algo diferente.

Sabe, meus amigos vêm com os papo de sempre, reclamando da vida que levam em casa e, por outro lado, não hesitam um segundo antes de ir embora para o conforto de seus lares com família, bichos e boletos. Essa é minha grande diferença. Eu não gosto de ficar parado. Se for para ser sozinho que seja em público. Nunca retraído ou recluso em um apartamento claustrofóbico pós-moderno, no qual finjo gostar de tudo e não tolero nada. Nessas horas que o cara de TV se torna um imbecil porque eu não posso xingar minha mulher nem gritar com meu filho. Pois, se fizer isso, o pouco de sanidade que me resta desabará fragorosamente.

Tem também aquele conto da escapadela depois do trabalho, que pode ser elaborado com a situação de estar a muito tempo sem beber ou de o hábito da bebida não ser bem visto em casa. Ou ainda tenho que comemorar minha mais recente promoção

– Você não sabe o que eu faço? Tem certeza? Eu sou muito famoso!

Essa é uma de minhas favoritas, as pessoas adoram estar cercadas ou aproximadas pela notoriedade. Mesmo que seja algo que elas entendam intrinsicamente como frívolo, lhe fascina da mesma forma que as grandes festas de Gatsby fascinavam há quase cem anos.

Outra muito boa e que faz bastante gente boa se compadecer é o fato de estar esperando alguém. Acrescentar certo desespero ou urgência a situação só a torna mais atrativa. Gostamos de nos sentir como se tivéssemos um relógio girando enlouquecidamente em nossa cabeça. Somos fixados por horários e prazos. Um homem é um ser de hábitos. Homem, no sentido amplo, de todos os seres de nossa raça. Esse é motivo das grades de programação. Dos horários quase britânicos dos programas e noticiosos que gostamos de assistir.

Se deixar montamos uma planilha com nosso dia que regule, inclusive, as idas ao banheiro. Idas ao banheiro. Este é o tipo de assunto que repeliria grande parte das pessoas e seria repelente se contado por 99% dos sujeitos. Mesmo não sendo um vendedor de canetas, ele conseguia transformar esse objeto de conversa em tema palatável. Ele sequer precisava de anotar coisas para conversar. O falatório lhe vinha ao natural. Sua maneira de conversar era suave. Não parecia o discurso de um estadista autoritário ou uma palestra de um professor em uma grande universidade.

Batam palmas, ele ia do trivial ao especial tranquilamente e sempre fazendo parecer uma conversa densa, que não era pesada, mas lhe conferia um ar de autoridade sobre o que estava falando e boa parte das vezes ele não fazia uma bagagésima ideia do que estava sendo tratado por ele próprio. Certa feita ele ouvira um rapaz dizer que tinha estourado a vértebra do dedo e pela reação de sua companhia, meramente uma expressão facial, fizeram com que ele entendesse que se tratava de um grande equívoco. Ele gostava de repetir esse causo, sem saber certamente se nossos dedos tinham um não vértebra e muito menos onde as vértebras ficavam no nosso corpo. Esse era o tipo de fascínio que todo aquele teatro era capaz de exercer. Ele poderia muito bem se declarar um homicida condenado recém-saído do presídio que isso não espantaria quem quer fosse. Pois, haveria um ar contrição e arrependimento tão genuínos que seu interlocutor ia começar a botar defeitos na vítima fictícia do conversador. Afinal, como aquele homem tão pacífico e sensato seria capaz de matar alguém e levando em conta sua idade, logo imaginaria tratar-se de crime que envolvesse a honra. E convenhamos se temos algo a manter nesses tempos é nossa imagem e não deixar que nos tomem pelo que não somos.

Bom já passava metade daquela noite e sua tática parecia não surtir efeito. Curiosamente ele saíra muito confiante hoje. Estava esperando algo muito especial hoje. Quem sabe conhecer uma viúva em sua primeira saída depois de alguns meses enlutada ou encantar um rico playboy que gostasse de beber uísque maior de idade e de fora do país. Algo parecia promissor no ar daquela quinta-feira. Claro que para não ficar tão manjada sua estratégia, ele variava os bares em que ia, os bairros que frequentava, as noites em que saía, suas roupas, seus cortes de cabelo, como estava ou se estava de barba e seus poderes camaleônicos o tornavam quase invisível. Nem mesmo os frequentadores mais assíduos ou os funcionários antigos dos botecos lhe conheciam e quem lhe conhecia fazia a cortesia de deixa-lo voar solo e longe quando pretendia esse isolamento para suas desventuras.

Todo esse clima causou anda mais surpresa quando uma jovem senhorita, digamos assim, um pouquinho além do início da idade balzaquiana lhe abordou dizendo: conheço bem seu tipo! Esse tipo de abordagem não lhe era familiar, fosse a forma, o conteúdo ou a virulência. A resposta típica de um cidadão desacostumado com o tipo de vida que ele gostava de levar seria redarguir com mais força o que inevitavelmente geraria um choque rápido, forte e fugaz.

Porém, ele era mais esperto que isso. Respondeu tranquilamente: fiquei interessado, me fale mais sobre meu tipo, confesso que eu nem sei direito como sou.

– Dissimulado!

– Calma, o que lhe faz pensar dessa maneira?

– Eu, eu penso dessa maneira por conhecer realmente bem seu tipo. Por exemplo, eu tinha certeza que você ia apelar para a estratégia do me matar com gentileza. Você quer que eu me sinta culpada. Mais do que isso. Quer minha vulnerabilidade. E, além disso, pretende estabelecer um ponto de empatia comigo.

– Poxa, parece que eu não consigo te enganar mesmo. Me leu por inteiro.

Parece que leu minha alma.

– Não me venha com metafísica. Principalmente porque sabemos bem que não possui alma, seja qual o ponto de vista filosófico ou religioso que queiramos abordar

– Sabe moça, você pode ser um pouco rude. Mas, com certeza, diz coisas interessantes.

– Ah é?

– Sim, sem dúvida. Falo a sério! Realmente você não tem papas na língua e é fato que pode perceber bem como cada pessoa funciona só no olhar.

– Mais condescendência. Pelo menos já está admitindo minha indignação. Isso você pode tentar, mas nunca vai roubar de mim. Nem em um milhão de anos.

– O que te causa tanta indignação?

– Você e as pessoas da sua laia!

– Eu? E quem seriam as pessoas da minha laia?

– Posso dizer de cabeça seu CPF e tenha certeza que não foi por ter lhe perguntado se você queria colocar seu Cadastro em um Nota Fiscal. Gente da sua laia… Quer mesmo saber?

– Sim. Estou cada vez mais curioso.

– Os da sua laia. São como eu disse dissimulados e, mais do que isso, furtivos. Sempre com três ou quatro intenções por trás do que dizem. Veem com esse papo mole, querendo baixar nossa guarda. Ao mínimo descuido estão em nossas cabeças, em nossas calças, em nossas coxas em meu coração.

– Tá certo, tá certo! Mas de onde diabos você me conhece? O que te faz pensar tão mal sobre mim? O que tem de errado em jogar uma conversa fora, ser cortês, desarmar um ânimo aqui ou ali?

– Sério, PELOAMORDEDEUS, quantas você pegou com esse tipo de frase, com esses lugares comuns, com sua falsa Inteligência?

– Olha, nem tudo na vida é conquista amorosa. Eu não fico contando. Porém, tenho de admitir que nunca tive uma conversa tão desagradável quanto essa.

– Sabe por que eu sou tão desagradável, sabe porque eu me tornei assim?

– Não. Não sei. Problemas na infância?

– Só faltou falar em regressão à fase oral, Dr. Freud! Que sujeitinho asqueroso

você é! E pensar que fui casada com você !?!

– Ah para, quem te mandou aqui para se passar pela Sara?

– Vicente, como você nunca deu a mínima atenção genuína para qualquer coisa que não fosse você próprio, até consigo engolir que não me reconheça com cabelo e roupas mudadas. Sara, desprazer!

– A Diaba em pessoa! Olha estava tentando e vou seguir tentando manter a compostura. Mas só você mesmo para ser tão castradora e para ter me levado aos hábitos de hoje. Ou achas que é coincidência eu ter começado com essas baboseiras de vir me arriscar erros de bar em bar justamente depois de conseguir me livrar das amarras que você me impunha?

– Eu castradora? Só podemos castrar aquilo que algum dia teve membro viril. Você sempre foi uma mulherzinha. Nunca precisou de ajuda minha para nada nisso. Pensa que é grande homem só porque seu badalo é considerável?

Nunca te disseram que tamanho não é documento, que melhor um pequeno brincalhão do que um grande bobalhão?

– Você não quer ser mais explícita! Sim, eu não te satisfazia. Mas não sou nenhuma mulherzinha por causa disso. Talvez fosse isso que você precisasse mesmo: uma mulher! Homens não lhe faltaram! Éramos eu e a torcida do Flamengo e do Corinthians e não te bastávamos.

– Sabia que você ia tentar te sair com essa. Botar a culpa nas traições. Em vez de ter o mínimo de pensamento crítico e empatia e lembrar que as traições vieram porque você só reclamava e dizia invejar teus amigos solteiros, sem compromissos, sem cobranças sem responsabilidades. Eterna criança!

– Melhor do que ter nascido uma velha sem coração. Uma verdadeira máquina espremedora de colhões!

– HAHAHA Lembrou do único livro que você realmente leu. Aquelas merdas daqueles contos do Bukowski que só te deram mais ódio por mim e por todas as mulheres. Te fizeram achar especial por ser um fracasso. Tudo que você quer é dar uma cagada de chope, não é? Quer sentir o sangue saindo pelo seu cu, seu veadinho filhodeumarapariga!

– Sim, sim, você tem toda razão. Eu pelo pouco que sei de Freud, mesmo iletrado, entendo sua fixação anal e sua vontade de ser currada por mim. Mas fique tranquila vou te manter frustrada e deixar você se afundar em suas pulsões de morte. Morra, morra logo!

– Ai, ai, ai, como ele ficou esperto. Deve ter aprendido truques novos. Pois fique sabendo que eu realmente seria muito frustrada se quisesse ser currada por você. Já que ficar suficientemente duro nunca foi o seu forte.

– Vadia, chega, CALABOCA!

Ela não replicou mais. Acho que nenhum dos dois tinha mais força. Fui tirar a saber e nenhum dos dois conseguia explicar como terminaram juntos na mesma cama depois de todo esse debate.

Ao final do ano comemoraram seu reencontro com um pacto suicida. Ninguém percebeu os dois tiros enquanto os fogos do réveillon espocavam por toda a cidade e a orla toda era tomada por oferendas para Iemanjá. A maioria das pessoas pedia por dinheiro nessa terra miserável. Mas acredito que alguns tenham feito as velhas mandingas por sorte no amor. Com certeza, agora, eles estavam protegidos de dois grandes azares que poderiam ter lhes ocorrido caso vocês fossem no lugar errado no momento errado.

Por Rodrigo Ramos, jornalista e escritor

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