A casa é do começo do século XIX. Antiga como a família que a construiu e que chegou ao Brasil ainda no século XVIII vinda de Portugal. A Tafona era a sede de uma sesmaria e Marô, a prima que cuida da relíquia que sobreviveu ao tempo, junto com o marido, Marco, conta que as terras tinham a extensão original de 100 mil hectares, ou, traduzindo, 100 mil campos de futebol. Pois no dia 07 de dezembro de 2024, os descendentes Vieira da Cunha reuniram-se para celebrar a história e a vida num churrasco para cerca de 70 pessoas. Eu estava lá, pois minha mãe pertence à família.
Numa algazarra de tentar montar a árvore genealógica, tentamos clarear os parentescos de uns com outros. “Sou filho de fulana, prima de cricrana, neta de beltrano”. A missão foi quase impossível, mas divertida. Mais que divertida, foi emocionante. Eu, particularmente, sem parentes próximos, ampliei minha relação afetiva com primos que nunca tinham ouvido falar de mim e outros, mais velhos, que não encontrava há muito.
A Fazenda da Tafona está viva. E pulsa dentro de nós da família. Mais que no seio dos parentes próximos ou distantes, é patrimônio histórico tombado e um sítio histórico de valor inestimável que desde sua origem, há nove gerações, permanece com um braço da família. Seu casarão e o que o cerca testemunharam momentos relevantes da formação de nossa terra, e seus proprietários se esmeram em preservar esta memória, compromissados que estão com o fato de o conjunto ter sido tombado pelo IPHAE (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do Rio Grande do Sul), em 2016. A preservação se justifica por seus valores históricos e arquitetônicos, preservados talqualmente foram erigidos em 1813.
Móveis, equipamentos e armas originais, entre elas preciosas adagas e centenas de objetos de louça em barro, cerâmica e porcelana, ali estão, exibindo como eram os usos e costumes dos séculos 18 e 19. E com o devido destaque figura o engenho da tafona, um moinho de farinha de mandioca movido por tração animal. Conservado com o cuidado que merece, é tido como um dos únicos exemplares completos que está em seu lugar original.
O casarão foi erguido no formato U, e vale citar uma das características que levaram o IPHAE a distinguir o conjunto: a argumentação de que o valor arquitetônico está “nas suas técnicas construtivas de origem luso-brasileira, e o conjunto de móveis agregados ao edifício complementa a narrativa iconográfica da época”. Destaca ainda que o mobiliário autêntico e o mecanismo completo da atafona, com as peças artesanais em madeira, mantidas no local da produção, reforçam o valor estético.
Eram escravos que moviam todas as engrenagens naquelas terras, o que incluía a produção da farinha de mandioca e a extensa criação de gado. A prima Marô Vieira da Cunha Silva e o marido Marco se desdobram para manter viva esta história, e há pouco mais de um ano realizaram um ato de grandeza ao apresentarem um pedido público de perdão pelo modelo de colonização que vigorou no local durante bom tempo, até o final do século 19. O pedido veio no formato de uma carta que reconheceu o passado escravocrata que vigorou ali, fruto de uma cultura que, longe de ser pacífica, sustentou “uma guerra injusta, desigual e desumana”. E foi com evidente emoção que Marô anunciou para os cerca de 70 presentes ao encontro do familião que foi aprovado na Lei Rouanet o projeto para recuperação das paredes de barro e do telhado com suas telhas introduzidas pelos portugueses no século 16. É obra para cerca de 6 milhões de reais, e torce-se desde já para que surjam em horizonte próximo os mecenas necessários.
A Fazenda da Tafona, agora reconhecida como território negro do Rio Grande do Sul, está na localidade de Porteira Sete, distrito de Cordilheira, em Cachoeira do Sul. Virtualmente pode ser apreciada no Instagram, espaço onde visitas podem ser agendadas. Este patrimônio é de todos. A Tafona também é pública pela história que preserva e conta através de seu telhado com eira e com beira e dos tijolos seculares. E para quem quiser visitá-la terá a acolhida da Paçoca, a guardiã atual da propriedade. Uma simpática cachorrinha fiel aos donos e também símbolo de afeto e carinho.
Por Susana Vernieri e José Antônio Vieira da Cunha, jornalistas
Que história linda! E que texo de qualidade, se escrito a quatro mãos, duas só poderiam ser da Susana!