Anora

Tive uma amiga garota de programa. Se chamava Daiana. Ela faleceu em um acidente de carro estúpido, ao retornar de Santa Catarina. Estava no banco de trás quando o automóvel recebeu uma fechada de outro veículo, durante uma ultrapassagem forçada.

Daiana era uma prostituta bem resolvida. “Não gosto de estudar nem de trabalhar”. Não que toda profissional do sexo não estude nem que garota de programa não seja uma profissão. No entanto, era assim que ela se definia. 

Por conhecê-la, sempre me incomodou o debate sobre não romantizar prostituição. “É fruto de vulnerabilidade e exploração. Uma vida de sofrimento”. Muitas vezes é. Mas nem sempre.

Daiana não parecia desejar mudar. Ainda assim, o imaginário de que um dia ela conseguiria “sair dessa vida” estava sempre presente. Seria putafobia?

Me deparei pela primeira vez com o termo “putafobia” ao ler o texto da jornalista Bárbara Krauss. Segundo ela, as críticas negativas ao filme Anora proferidas por Milly Lacombe, colunista do UOL, baseiam-se no preconceito de “mulheres empoderadas que apedrejam putas.”

Milly Lacombe escreveu que o Oscar foi levado pela “novinha que interpretou a prostituta em busca de seu príncipe. E quem riu por último foi Hollywood”. […] O cinema estadunidense não está apto a enxergar camadas para além da violência sexual e da prostituição na condição de uma mulher. A premiada foi justamente a novinha que interpreta uma trabalhadora sexual em busca de seu macho salvador”.

Bárbara Krauss não foi a única a discordar de Milly

Uma professora que tive na faculdade de jornalismo, doutora em comunicação, LGBT, feminista e de esquerda, publicou em seu Instagram que a crítica de Milly Lacombe é problemática. […] “Parece apenas destilar a dor nacionalista pela não vitória de Fernanda Torres e por uma súbita e muito pouco matizada paixão por Demi (Moore)”. Até então, eu não havia assistido ao filme Anora. Ontem fui ao cinema tentar entender tantas opiniões diferentes. A experiência foi tenebrosa.

Em que pese eu concorde com Bárbara Krauss sobre Anora abordar a “falência das ilusões do capitalismo e, com elas, ideais de classe e gênero”; e que “tratar as trabalhadoras sexuais exclusivamente pelo viés da marginalidade serve aos interesses do patriarcado de criar a ameaça da mulher vagabunda”; E eu compreenda o valor de uma produção independente, que há alguns anos jamais teria chance de competir no Oscar com grandes produções de Hollywood, preciso explicar por que achei Anora angustiante.

Vamos utilizar o recorte de uma das principais cenas protagonizadas por Mikey Madison no papel de Anora: a invasão domiciliar, cuja sequência traz o tão aclamado clima caótico. Nessa sequência, presenciei uma sessão de cinema lotada de pessoas a desfrutar de um agradável momento de lazer noturno em uma sexta-feira: gargalhar de uma prostituta de 25 anos sendo agredida, oprimida, amarrada, amordaçada e mantida em cárcere. Para o público da sala, um deleite assistir. Para mim, uma tortura.

Vamos fazer um exercício. Se, em vez de garota de programa, Anora fosse travesti, e tivesse ousado acreditar que o herdeiro de um oligarca russo pudesse apaixonar-se por ela e apresentá-la à família? É uma narrativa coerente para ser cômica, porque homens, principalmente em relacionamentos, são mais imaturos? Porque meninos, afinal, são apenas meninos, e se metem em encrenca ao se divertir? Pareceria razoável que, para desfazer o mal entendido, a travesti fosse agredida, oprimida, amarrada, amordaçada e mantida em cárcere para divertir uma plateia? 

A crítica especializada gostou de Anora. Isabela Boscov rasgou elogios, e revelou ter gargalhado na sequência da invasão à casa, justamente a cena que me deixou com vontade de levantar e sair da sala de cinema. Muitas pessoas que conheço o acharam genial e disruptivo.

Quais são os fatores que nos fazem ter percepções tão distintas a respeito de uma mesma obra?

Me faço os mesmos questionamentos de Bárbara Krauss e de minha ex-professora. Há “falta de boa vontade de entender o filme”? Não gostar de Anora é uma militância radical e, quando a crítica vem de uma mulher, é um “feminismo chato e inexorável, que divide o mundo entre certo e errado, sem nuances”? Por que ao assisti-lo tive uma das vivências mais angustiantes, contraditórias e torturantes?

Em 2010 ou 2011, Daiana estava em minha casa e coloquei no DVD Carne Trêmula, de Almodóvar. Perguntei a opinião dela. Lembro de ela dizer que nunca tinha ouvido falar, e de ter adorado.

Hoje é um dia que eu gostaria muito de assistir novamente a um filme com Daiana e perguntar o que ela achou. Eu não gostei. E, asseguro: não é putafobia.

Bá experiência por Diogo Zanella do Estúdio Telescópio. Para ler outros textos da coluna Bá experiência, acesse este link.

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