Fui assistir ao filme Ainda estou aqui. Na saída, banheiro feminino lotado, e o único comentário feito em voz alta foi: “Como é ruim a dicção do Selton Mello. Não consigo entender nada do que ele diz”. E a resposta veio na mesma linha “filme brasileiro sempre teve problema de som”.

Na hora me peguei pensando que diante de tanta coisa para falar sobre o filme essa seria a questão mais relevante? Era como se diante de um assunto delicado e, precisando se manifestar de alguma maneira, a saída foi falar algo bem superficial para não abordar a questão dos desaparecidos brasileiros, da impunidade que acontece até hoje, da falta de espaços como um museu ou um memorial ou mesmo uma placa com nome dessas pessoas que foram assassinadas no endereço onde moravam, como existe em Buenos Aires.

Aquilo me perseguiu rua afora. Até eu me dar conta. O filme é exatamente sobre isso. Sobre o silêncio, a dor contida, o medo que pairava e que podia atingir a qualquer um que fosse considerado suspeito. Nem precisava ser na calada da noite. A única cena em que a atriz Fernanda Torres se permite extravazar é a do atropelamento do cachorro. Ali expressa sua raiva, diante da morte de simpático Pimpão. Tem uma desculpa “real” para chorar, gritar e até esmurrar o vidro dos agentes que estavam sempre de campana na frente da sua casa.

Fazer cara de paisagem e seguir agindo naturalmente foi a estratégia que muita gente adotou para sobreviver naqueles tempos. Talvez, por costume, até hoje muita gente adote a tática quando vê alguém em situação de rua dormindo em um papelão, gente com cartaz dizendo “tenho fome” na sinaleira, quando olha da janela do carro para pessoas passando mal dentro de um ônibus sem ar condicionado no calorão do “Forno Alegre” e da Região Metropolitana. Qualquer fato que cause desconforto ou culpa, o movimento pode ser esse que aconteceu no banheiro feminino. O disfarce atrás de palavras ou ações vazias. A opção de olhar para o lado, fingir se importar, dizer meia dúzia de frases de efeito, comentar como o mundo era melhor antes, xingar algum político.

A ideia é tentar esquecer que viver exige verbo, conexão com outros, sentir que podemos mudar algo no entorno com ações reais, envolvimento, empatia no caos do cotidiano e a certeza de que estamos em rede. Um incêndio no Amazonas e as cinzas descem para a ponta do mapa do país. Habitamos a mesma casa, também conhecida como Planeta e, pasmem, não é plano! É circular. O que vai, volta.

Tudo aquilo que é sufocado, um dia cobra sua conta. São assim os lutos que não vivemos, sejam de pessoas, de bebês não nascidos, ciclos e relacionamentos que terminam. Ou ainda emoções que cimentamos embaixo de um sorriso gelado. Podem ser lembranças pessoais ou de uma história coletiva, mas que um dia vão surgir como fantasmas e nos assombrar. Pode cavar a cova mais profunda, enterrar na areia, jogar no mar, uma hora algo se movimenta e os esqueletos surgem. Mesmo que muita gente escolha viver sem passar a limpo o passado, ignorando que as crises climáticas vieram para ficar. Mesmo se optar por ligar o piloto-automático, sem questionar, enchendo sua vida de obrigações, deveres e agenda lotada sem nunca estar realmente aqui.

Por Liège Alves, jornalista, terapeuta floral e mestre em rakiram

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  1. Bernadete Bestane says:

    Ouvi alguém dizendo, na mesma situação, que o filme tratava apenas de uma mãe lutando para proteger seus filhos. Quem não quer, não enxerga nada.

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