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Crônica: “Arte de rua e o pior dia da minha infância”, por Maruí Fogaça

Eu sempre fui uma criança que a família se orgulha por ser muito estudiosa, exibindo para outros parentes e amigos aquela pequena mente, que em verdade apenas se esforçava muito, como algo excepcional e brilhante. Eu era a criança irritante que amava as professoras e por elas era amada, sentando sempre com um ar de soberba nas classes que ficavam perto da mesa delas. A disciplina e a rigidez eram fundamentos muito importantes para mim, embora também penosos. Esse meu comportamento recluso e, como se dizia na época  “CDF”, fez com que no Ensino Fundamental eu não me misturasse com a turma do fundão e fosse um pouco hostilizada pelos bon vivants da minha turma.

Nasci e passei minha infância numa cidade de pequeno porte no interior, mas minha família mantinha relações de trabalho em Porto Alegre, o que fazia com que visitássemos com frequência a capital. Outro fator considerável é que, além de filha única, eu morava com os meus avós, então me faltava a malandragem da rua, a esperteza e o saber-fazer que só quem vive em uma matilha de irmãos é portador. Portanto, sim, eu era uma criança ingênua.

Lembro, especificamente, de uma dessas idas a Porto Alegre. Eu deveria ter por volta dos 8 anos, já sabia ler razoavelmente, então, enquanto andava no banco de trás do carro, me entretinha lendo placas de rua, anúncios publicitários, outdoors… Enfim, entusiasmava-me e me sentia bastante soberana de mim mesma ao juntar letras e fazer essa mágica que é ler. Num momento, passamos por um grande terreno abandonado que tinha muitos muros contendo pichações. Talvez o fato de eu ser colona —  embora a prática do pixo fosse até que disseminada na minha cidade natal —  me ative especialmente àqueles rabiscos.

Foi quando o carro que meu avô dirigia parou num sinal, e eu, num ímpeto que até hoje desconheço de qual profundeza do meu cérebro se originou, virei pra minha vó e disse:

– Tu é uma bucetuda!

Naquele momento foi como se o tempo tivesse sido suspenso, por alguns segundos fiquei repetindo na minha cabeça “bucetuda, bucetuda”. O silêncio no automóvel perdurou por mais algum tempo. Eu não conseguia entender, mas sentia um mal-estar tomando conta do meu corpo — meus ossos doíam. Não foi preciso alguém abrir a boca para falar, eu já palpava a repreensão pelo o que havia dito, embora não entendesse. Para mim, era só uma nova palavra que eu tinha lido numa pichação; achei que era um elogio à Ana, Maria, Suzana, sei lá o nome que precedia a palavra buceta naquele muro. As pessoas no carro me repreenderam dizendo que era um nome-feio e que eu nunca mais deveria pronunciar tal palavra. Eu me senti muito mal, porque aquilo parecia ter ofendido muito a minha vó — e Deus me livre ofender a minha vozinha. Foi preciso viver um pouco para descobrir mais tarde que buceta significava vagina, aquilo que, em nós mulheres, ainda tem a conotação de nome-feio, de algo sujo, que deve ser mantido no privado e não ser exposto. Eu tinha falhado com os meus avós — eu era a princesa dos olhos deles e tinha falhado.

Aí já era uma época em que eu descobri que algumas coisas misteriosas aconteciam na minha buceta. Existia a coceirinha, isto é, aquele formigamento que sucedia o contato repetitivo na região e, novamente, eu não entendia direito o que estava fazendo — só tinha a consciência que era errado encostar na minha vagina assim. Embora eu me tocasse vez que outra, eu me sentia mal — era como se eu estivesse novamente chamando a minha vó de bucetuda. Era uma experiência que eu, de maneira autoconsciente, boicotava. Lembro que no colégio todos meus colegas homens adoram falar sobre seus pintos, contavam vantagem sobre tamanho e essas coisas. Do lado das meninas havia um silêncio que contrastava com um que outro comentário negativo sobre vaginas, que vinham, lógico, de meninos.

Eu só fui descobrir que buceta era de fato uma coisa boa quando comecei a me relacionar sexualmente com mulheres. Bom, aí, uau! A partir de então, consegui me sentir confortável com a minha vagina e ver que outras meninas também se sentiam.

Espero que umas das vitórias do feminismo seja que o adjetivo bucetuda um dia vire de fato um elogio, e que as pessoas não precisem mais passar pelo constrangimento de xingar a própria vó sem querer. E que a Ana, Maria ou Suzana tenham conseguido superar essa história também.

E no mais, desculpa, vó.

Maruí Fogaça Bastolla
Cientista social, redatora e aventureira do marketing digital.

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