Fotos do Carne Doce por Natália Arjones
Na época em que o EP Dos Namorados foi lançado, em 2013, o Carne Doce ainda era uma banda a dois, formada apenas pelo casal goiano Salma Jô e Macloys Aquino. Logo em seguida, não só o primeiro trabalho deles se expandiu, dando origem ao disco intitulado Carne Doce (2014), como também a dupla, que adotou novos integrantes, formando um grupo propriamente dito.
De lá para cá, outros dois álbuns vieram à tona: Princesa (2016) e Tônus (2018). Este último, muito aclamado pela crítica e pelos fãs, foi avaliado pela revista Rolling Stone Brasil como a terceira melhor produção musical nacional do ano passado. Mais maduro, introspectivo e sombrio em comparação aos seus antecessores, o último lançamento da banda atingiu um público ainda maior.
Todo seu esforço e suas composições marcantes, que tiveram como ponto de partida a “intimidade de uma casa” (segundo a definição da gênesis da banda em sua página no Bandcamp) acabaram levando Salma, Mac, Aderson, João e Fred ao palco principal do Lollapalooza 2019. E como se boas novas não viessem sozinhas, vale ressaltar, ainda, que os artistas também se apresentarão pela primeira vez na Europa em outubro, em algumas cidades de Portugal e em Londres. De Goiânia para o mundo.
Antes de seguir alçando novos voos, o grupo volta à capital gaúcha para um show no Opinião que incluirá clássicos dos dois primeiros discos, Tônus e um novo single, conforme declaração feita pela frontwoman Salma em entrevista especial à Revista Bá, que você confere abaixo!
— Processo de composição e inspirações
Revista Bá: numa espécie de tentativa de desmistificação, muitos de nós, na posição de fãs, temos a curiosidade de saber mais sobre o processo de criação dos discos das bandas de que mais gostamos. Vocês poderiam nos dizer como novas músicas são preparadas (desde a composição, passando pela melodização, até a produção final em estúdio)?
Salma Jô: às vezes surgem em jams e aí eu boto a letra, ou o Mac ou o João fazem uma base e eu boto a letra com a melodia, e depois entram os arranjos. Isso varia. Depois de tudo arranjado vamos para o estúdio. Na verdade, não tem segredo nenhum.
Revista Bá: vocês percebem que há na atual MPB uma tendência a criações mais melodramáticas, que se encaixam à classificação “para dançar chorando”, atribuída ao Tônus e especialmente à “Comida Amarga”? Como vocês se percebem na cena musical brasileira? Que outros artistas, nacionais ou internacionais, inspiram vocês?
Salma Jô: não sei se é uma tendência. Eu sinto que minhas letras têm uma acidez, uma aspereza a mais; são mais rockeiras nesse sentido, mas ao mesmo tempo temos um formato que ainda é rock demais para esta nova MPB, que está mais eletrônica… Também temos algo de “goianos” ou do “interior”. Sinto que são essas características que mais nos diferenciam.
Revista Bá: a junção de “sertão” e “urbano” pode formar uma imagem interessante: centros que conservam características provincianas. Nesse sentido, Goiânia, e até mesmo Porto Alegre, talvez seja um exemplo de sertão urbano. De que forma ter nascido e ocupar este entre-lugar (que não é nem megalópole nem interior) influencia quem são vocês e está presente em seus trabalhos?
Salma Jô: acho que influencia muito, de modo que às vezes nem percebemos. Em primeiro lugar, influencia numa questão prática. Não morar em São Paulo é ter uma logística mais cara, é ter menos oportunidades de parcerias, mídia e contatos. Mas talvez o mais importante é que nascemos na perspectiva de coadjuvantes no Brasil. Somos de alguma cidade que não é São Paulo, não é o Rio, não é Recife, nem é Porto Alegre, isso basta para nos sentirmos do interior, e nos dá uma simpatia e identificação com os outros que também se sentem assim, que é um país inteiro coadjuvante. Sempre estamos à vontade.
Revista Bá: ainda que seja possível escrever sobre situações não vividas, composições sempre carregam traços autobiográficos e percepções particulares de mundo. Salma, pode nos contar a história por trás de algum trecho de alguma de suas canções?
Salma Jô: em “Amigo dos Bichos”, que é uma música sobre o sentimento de solidão na infância, tem um trecho bem bonito que é:
“O que tem de melhor é sua lancheira / E vai ter que morar no alto na mangueira / Ser amigo dos bichos”.
É uma fantasia que foi minha, mas que é universal, que foi uma felicidade capturar. Eu tenho uma facilidade em me inspirar nesses momentos tristes. As músicas de fossa fluem muito facilmente para mim, não porque me inspiro em um ou outro relacionamento, mas no que eu senti e capturei quando fui rejeitada, por exemplo.
Revista Bá: sobre coisas que somente cantores saberão responder — performar as músicas repetidas vezes acarreta, de certa forma, em um esvaziamento da carga emocional que elas traziam consigo originalmente?
Salma Jô: a performance repetida várias vezes às vezes cansa sim, e a inspiração pode se desgastar. Em parte, por isso algumas músicas saem do set mesmo ainda tendo algum apelo. Performar no automático é algo que a gente evita e vigia. Mas acontece. Todo mundo que trabalha no palco já experimentou isso.
Revista Bá: em entrevista recente à Noize, Ariel Fagundes comentou que “o show do Tônus traz uma carga cênica e estética muito forte”. Tem surgido um desejo de criar apresentações mais performáticas? E mais: podemos esperar uma Salma autora de livros, pintora, escultora, dançarina, […] no futuro?
Salma Jô: haha, já acho que tenho muito a aprimorar como letrista e cantora. Acho que o caminho após o Tônus, na verdade, será diferente; talvez menos performático, menos expansivo… Não sei, estou sentindo isso.
— Novos lançamentos e de volta à capital gaúcha
Revista Bá: Tônus foi definido como um álbum que coloca o dedo na ferida. Um ano após o seu lançamento, quais feridas ainda estão abertas? Sobre quais temas gostariam de falar a respeito em um próximo disco?
Salma Jô: em Tônus havia muita dor de cotovelo, ansiedade, um sentimento de insuficiência, e resignação. São sentimentos muito comuns, há milhões de memes sobre eles, provavelmente vou continuar falando sobre isso também, mas ainda estamos compondo e não definimos um conceito ou tema para o próximo disco. Estamos abertos; são os temas que nos encontram, na verdade.
Revista Bá: falando nisso, poderiam nos adiantar mais informações sobre o CD seguinte? Vocês já estão produzindo-o? Existe uma previsão de lançamento? Vocês acham que ele será um marco, um novo momento para a banda? Se sim, por quê?
Salma Jô: nada ainda. E ainda é cedo para dizer o que vai representar para a banda.
Revista Bá: no mês passado, tivemos o privilégio de cobrir o show de Duda Beat no Opinião. Na ocasião, a cantora revelou aos fãs porto-alegrenses que sempre foi bem recebida aqui e que a capital gaúcha ocupa uma posição de destaque no coração da artista. Qual a relação de vocês com Porto Alegre e como se sentem por estarem de volta à cidade?
Salma Jô: também sempre fomos muito bem recebidos em Porto Alegre, os nossos shows sempre foram ótimos, emocionantes. O comentário da Duda reforça a impressão de que é algo da cultura local mesmo, de que o público da cidade é especial. Estamos felizes por voltar e queremos voltar sempre.
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Revista Bá: por fim, o que podemos esperar do show do Carne Doce no Opinião?
Salma Jô: músicas do Tônus, do Princesa e do Carne Doce, uma música inédita, um show muito lindo.
— Show em Porto Alegre
Onde: Bar Opinião (Rua José do Patrocínio, nº 834 – Cidade Baixa)
Quando: nesta quinta-feira, 26/09, às 22h (abertura da casa às 20h30)
Ingressos: disponíveis em pontos de venda e pela internet (saiba mais aqui)
Por Vinícius Alexandre Rocha Fernandes da Silva