O tenente-coronel da ativa do Exército Mauro Cid, 44 anos, é um capítulo à parte na montanha-russa que foi a sucessão de fatos ocorridos durante o governo Jair Bolsonaro. Dono de um currículo consistente, Cid foi além do seu dever no desempenho da função de ajudante de ordens do ex-presidente da República. Foi articulador e cúmplice de uma série de irregularidades cometidas por Bolsonaro. A cereja do bolo foi tornar-se o mestre da farra das joias de Bolsonaro, presentes ganhos de chefes de governos estrangeiros que deveriam ter sido incorporados ao patrimônio da União, mas que o ex-presidente tentou ilegalmente tomar posse. Na semana passada, virou manchete nos jornais a descoberta de que Cid tentou encontrar comprador para um relógio Rolex (ornado com diamantes e ouro) avaliado em US$ 60 mil (cerca de R$ 290 mil), que foi doado pelo governo da Arábia Saudita, em 2019, na visita do então presidente àquele país. A Polícia Federal (PF) investiga os motivos pelos quais o relógio não foi incorporado ao patrimônio da União, mas ao acervo particular do ex-presidente. Em 2022, o tenente-coronel armou o resgate de joias doadas pelos sauditas à então primeira-dama Michelle, no valor de R$ 5 milhões, que foram apreendidas na alfândega do aeroporto de Guarulhos. Há também a participação do ex-ajudante de ordens em outro episódio. O ex-presidente e Michelle ganharam pedras preciosas em Teófilo Otoni (MG) e ele ordenou que os bens fossem para o acervo particular da família Bolsonaro. Além desses rolos, a PF ainda encontrou a minuta do passo a passo para um golpe de estado no celular do tenente-coronel. E rastros da movimentação de bens que está sendo investigada como provável lavagem de dinheiro. Ele também está envolvido na falsificação dos atestados na carteira de vacinação contra a Covid-19 do ex-presidente, da primeira-dama e da filha do casal. E vêm por aí mais encrencas, que estão sendo garimpadas pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do 8 de Janeiro (CPMI do 8/01) e que vão cair no colo do tenente-coronel, preso desde maio em uma unidade militar em Brasília (DF).
Tomei a liberdade de apenas citar os rolos mais visíveis em que Cid está envolvido sem entrar em maiores detalhes, já que existem em abundância reportagens, documentários e entrevistas disponíveis na internet. Vou conversar sobre um detalhe a respeito desses casos que os colegas jornalistas estão deixando de lado. E que fui convencido a explorar por um grupo de amigos profissionais de várias áreas com quem discuto assuntos que fazem parte das manchetes dos noticiários. Fui lembrado que o tenente-coronel faz parte de um grupo de pessoas que já tinham a sua vida profissional encaminhada e resolveram não só acreditar nas fantasias do ex-presidente, mas agir como se vivessem em uma república de bananas, transgredindo a lei e apostando que não daria em nada. No caso de Cid, ele foi influenciado pelo seu pai, o general Mauro Cesar Lourena Cid, que foi colega de Bolsonaro na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), na década de 70. Ora, o tenente-coronel não é um adolescente. Tem 44 anos, é casado, tem filho, e até cruzar com o ex-presidente vinha tendo um bom desempenho profissional. Também não se deixaria influenciar pelo fato de Bolsonaro ter conseguido um posto para o seu pai em Miami (EUA), ganhando um bom salário. O que levaria Cid a ir além do seu dever como ajudante de ordens do presidente da República? Uma das coisas que certamente o influenciou foi o fato de que Bolsonaro sempre teve alguém que fizesse o serviço sujo para ele, incluindo os seus três filhos parlamentares: Carlos, vereador do Rio, Flávio, senador pelo Rio de Janeiro, e Eduardo, deputado federal por São Paulo. Algumas pessoas que fizeram parte do círculo íntimo de líderes do ex-presidente entenderam qual era o jogo dele e não sujaram as mãos, como o general Hamilton Mourão, que foi vice-presidente e se elegeu senador pelo Rio Grande do Sul, e o general Braga Netto, que foi ministro e concorreu na chapa da reeleição. Lembro aqui de um episódio envolvendo o então ministro da Saúde, o médico Luiz Henrique Mandetta. Logo que estourou a pandemia de Covid, imediatamente Bolsonaro se posicionou contra as medidas sanitárias recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Na época, 2020, não existia remédio e muito menos vacina contra o vírus. Mandetta fincou pé, defendeu e implantou as medidas da OMS. Foi demitido e no lugar assumiu o seu colega Nelson Teich, oncologista de renome. Teich ficou um mês na Saúde e se demitiu. O relatório de 1,3 mil páginas da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado da Covid-19 (CPI da Covid) colocou as digitais do governo Bolsonaro nas 700 mil mortes causadas pelo vírus. Mas não as deles. Foram as do terceiro ministro da Saúde de Bolsonaro, o general Eduardo Pazuello, que disse uma frase sobre o então presidente que ficou famosa: “Uns mandam e outros obedecem”.
O ex-presidente responde a mais de 300 inquéritos policiais, processos e outras broncas com a Justiça. Lembro, por exemplo, da tentativa de golpe de estado em 8 de janeiro. Quando bolsonaristas radicalizados saíram quebrando tudo que encontravam pela frente no Congresso, no Palácio do Planalto e no Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, o ex-presidente estava em Miami. Na ocasião, foram presas mais de 1,2 mil pessoas e até hoje a PF ainda busca os responsáveis pelo rolo todo. Com o ex-presidente ainda não aconteceu nada. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) o tornou inelegível por oito anos por ter convocado uma reunião com embaixadores estrangeiros, na qual acusou sem provas que seria vítima de sacanagem nas eleições. Essa foi uma das raras vezes em que Bolsonaro deixou as suas digitais num rolo. A respeito do tenente-coronel, o ex-presidente disse, no meio de uma entrevista, que esperava que ele não roesse a corda. Um recado para lembrá-lo que as digitais que estão nos crimes são as de Cid. Desde os primeiros dias que começou a cumprir o seu mandato sempre escrevi que Bolsonaro não era um gênio. Mas um cara muito esperto, com um apurado instinto de sobrevivência política. O tenente-coronel Cid está em uma bela enrascada.
Por Carlos Wagner, jornalista