Por Raquel Marques
Raquel é Presidenta da Associação Artemis (ONG contra a violência doméstica e obstétrica. Entrevista feita por Angélica Kalil em 2015, que está no livro Você é feminista e não sabe, de sua autoria e da ilustradora Mariamma Fonseca. Confira.
A quem pertence o corpo da mulher? O corpo humano é da pessoa. Se a gente não puder mandar, não puder decidir sobre o próprio corpo, que outro tipo de liberdade interessa? Essa é a teoria. Na prática, o corpo da mulher pertence ao consumo, pertence à mídia, pertence às famílias. O corpo da mulher pertence a interesses. A gente precisa caminhar para um outro lado, recuperar esse corpo.
O que une questões feministas que parecem estar em campos opostos, como o direito ao parto humanizado e o direito ao aborto? Autonomia e respeito ao corpo feminino. O tabu do aborto é um tabu muito recente na nossa sociedade. As nossas avós e bisavós tinham o costume de tomar chás para a menstruação descer, ponto. Não existiam exames, não existia teste de farmácia, não existia ultrassom, não existia nada que dissesse que você estava grávida. E a pessoa só ia se assumir grávida quando a barriga realmente crescia e quando sentia o bebê mexer. Antes disso, ninguém sabia muito bem o que estava acontecendo. Na sabedoria feminina esse controle da natalidade através do aborto sempre aconteceu. Nos últimos talvez oitenta, cem anos, é que passou a existir uma maior vigilância a esse respeito, principalmente quando somem as figuras das parteiras. Essa figura feminina é afastada e as mulheres passam a ser atendidas em centros médicos por homens. Quando os homens entraram no cenário da assistência à vida reprodutiva da mulher, uma das grandes questões foi o controle. O controle de que ela tivesse os filhos, o controle de que ela não fosse abortar um filho eventualmente de uma relação extraconjugal, enfim. Retomar a autonomia da decisão da sua vida reprodutiva, ter ou não ter filhos e como vai ter o seu filho. Retomar o parto como um evento sagrado, um evento fisiológico, onde a mulher tenha a última palavra – ainda que sob uma avaliação médica que eventualmente oriente sobre potenciais riscos. Mas que ela possa decidir o que ela vai viver. Acho que é o que une os dois polos, decisão sobre o próprio corpo, autonomia. Não de uma forma leviana. As pessoas normalmente associam essa ideia de meu corpo, minhas regras parece que para discutir banalidades.
Por que a liberdade da mulher é tão temida? Imagina que subversivo seria um mundo onde as mulheres se sentissem livres para fazer e ser quem elas quisessem. Por exemplo, não se submeterem mais à indústria da beleza, não terem mais medo de suas rugas, nem dos seus cabelos brancos. Quantos negócios iriam fechar, de salões de bairro a grandes empresas químicas? Que subversivo seria se as mulheres não assumissem mais uma lógica heteronormativa de relacionamento, como seria para ter filhos e cuidar da família? Que subversivo seria se as mulheres começassem a ocupar efetivamente o espaço público e brigar por terem representatividade? Quanto mudaria a gestão das empresas se nós tivéssemos mulheres – e não mulheres que têm que emular um comportamento masculino – nestes espaços? Eu acho que mudaria muita coisa o olhar e a presença da mulher livre nos espaços públicos e privados. E esse medo paralisa a todos, homens e mulheres. Lidar com a liberdade é uma coisa muito angustiante, quando a gente tem um parâmetro do que é certo e do que é errado, ainda que a gente saiba, existe uma promessa de um caminho que, se você seguir, você vai ter um final conhecido. Quando você é livre, qual será o seu final?
O gênero é uma construção cultural? Quando a gente vive em um contexto onde todas as pessoas se comportam de maneira semelhante fica muio difícil separar o que é natureza do que é comportamento aprendido. Alguns com- portamentos aprendidos são tão fortes que a gente passa a ter reações automáticas a eles. E isso acaba se tornando quase um insinto. Essa sociedade que foi evoluindo e se moldou em uma certa submissão das mulheres e um domínio dos homens, ela é tão hegemônica, ela é tão prevalente que as pessoas justificam esses comportamentos falando: é natural que seja assim, é o jeito da mulher, é o jeito do homem. As pessoas introjetam toda essa cultura de comportamento eperado e isso tem uma força semelhante à natureza e instinto. Na nossa sociedade a gente tem esse entendimento de binarismo sexual, então ou é homem, ou é mulher. A gente fala: é óbvio. Mas não é óbvio, nem é natural, nem é dado. E é muito difícil entender isso. Há culturas onde é superpossível a pessoa ter um outro gênero. Até biologicamente existem as pessoas que são intersexo. E elas não deveriam ser encaradas como uma aberração ou uma deformação. Elas são pessoas naturais, como todas nós. A gente sempre cria uma norma e quem sai dela está doente. Talvez seja o tempo de a gente discutir: Será que não é a norma que está errada?
Conforme relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado em 2016, no mundo todo as mulheres são as responsáveis pela maior parte das tarefas domésticas não remuneradas – o que inclui cozinhar, limpar e cuidar de pessoas da família. Os números variam de cultura para cultura, mas em média, em todo o planeta, as mulheres trabalham dentro de casa, e sem receber por isso, cerca de 2,5 vezes mais do que os homens.
Um exemplo disso são os cuidados domésticos e de familiares, quase sempre responsabilidade de uma mulher. Nós temos muito o discurso de que os problemas da família são problemas privados. As crianças são problemas privados, os velhos são problemas privados, os doentes são problemas privados, os deficientes são problemas privados. A quem interessa jogar essa conta para dentro das famílias? E quem paga essa conta? Quando a gente fala que tudo isso é problema privado, cada um que dê conta dos seus familiares, a impressão que se dá é que isso é distribuído igualmente na população. E que dentro de uma família esse trabalho é distribuído igualmente entre todos os envolvidos. Mas, na prática, isso sempre recai ou, com grande frequência, isso recai sobre uma mulher. E isso talvez explique, em parte, porque as mulheres são maioria na pobreza. Quando você olha para a pobreza no mundo ela é majoritariamente feminina e, no Brasil, também negra. Isso tem todo um recorte que a gente tem que buscar explicações.
Eu já conversei com pessoas de algumas empresas que têm salários menores, mas são empresas que oferecem mais estabilidade, ou alguns benefícios melhorzinhos. Os homens não ficam nessas empresas, porque eles buscam uma remuneração mais agressiva. Quem fica nessas empresas são as mulheres, que preferem ganhar menos, mas ter uma segurança e uma possibilidade de conciliar melhor a vida privada com a vida profissional. Nós precisamos discutir essa questão do cuidado e entender isso como uma questão social.
Qual a diferença entre igualdade e equidade de direitos? Igualdade é quando você dá exatamente as mesmas condições para duas pessoas com características diferentes. Se você faz isso, elas não vão conseguir performar os mesmos resultados. Quando você pensa em homens e mulheres, homens e mulheres não são iguais. Pensando de novo em vida reprodutiva, que é o que nos distingue, quando a mulher fica menstruada, ela tem algumas dificuldades próprias que os homens nunca enfrentam. Ou, quando a mulher tem um filho, ela tem um puerpério, ela tem um bebê para amamentar que ela não pode dividir com o companheiro: você vai amamentar hoje e eu amamento amanhã, você dorme hoje e amanhã eu durmo.
Então, não existe igualdade absoluta entre homens e mulheres e nunca existirá. Mas nós podemos discutir a equidade, a criação de um sistema onde as diferenças intrínsecas de um e de outro grupo sejam compensadas com políticas para que, no final, todos tenham razoavelmente as mesmas chances de alcançar a linha de chegada. Será que eu preciso colocar um banquinho extra para que você tenha a mesma altura do que eu e consiga ver o jogo na mesma perspectiva?
Qual é o papel do homem no feminismo?
O homem é importante, porque ele é o outro lado, a outra metade da população, os que serão também bastante impactados por esse feminismo – seja pela mudança do próprio comportamento ou até por uma libertação de papéis que são cobrados dele. Mas ele tem que tomar o cuidado de não assumir a voz no feminismo, de não falar pelas mulheres no feminismo, especialmente quando existirem outras mulheres que possam fazer isso. Eu acredito que o homem não possa ser protagonista no feminismo. Quem fala, quem reclama, quem pauta, quem diz quais são os problemas e soluções são as mulheres. Os homens são superimportantes, mas como pró-feminisas, ou seja: eu apoio essas ideias. E não se tornando o centro da discussão, ou eles irem catequizar as pessoas para dizer o que as mulheres precisam, pois isso é uma tutela de novo. Coloca novamente a mulher em uma situação de infantilidade, de dependência, de fraglidade. Por que ela não pode falar por si?
Não passar para a frente o machismo seria também um papel do homem, não? Não passar para a rente o machismo é um papel do homem e da mulher crítica. Não é fácil para nenhum dos dois, porque exige essa reflexão de vida inteira. A gente leva uma vida inteira questionando cada comportamento nosso para distinguir o que é biologicamente natural, o que é da sua personalidade e o que é comportamento aprendido. É uma vida inteira questionando coisa por coisa e assumindo essa postura de mudar. As mulheres eventualmente também apoiam comportamentos machistas, reproduzem comportamentos machistas. Cabe a todos que entenderem que isso é um problema desconstruir essa realidade.