Por Jacqueline Pitanguy


Jacqueline é socióloga, cientista política e fundadora da CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação. Entrevista feita por Angélica Kalil em 2015, que está no livro já esgotado Você é feminista e não sabe, de sua autoria e de ilustradora e artista Mariamma Fonseca. Confira.

O que é feminismo?

É uma pergunta que requer uma resposta bem complexa. Em princípio, o feminismo é uma ação política. É uma agenda política voltada para alcançar direitos para as mulheres na sociedade e para eliminar barreiras que, pelo fato das relações se estruturarem de forma hierárquica entre homens e mulheres, colocam uma série de dificuldades para que a mulher possa se realizar plenamente. As dificuldades começam na desvalorização cultural do feminino. Ser menina é menos do que ser menino. A menina é criada salientando as suas qualidades de fraglidade, passividade, dependência, domesticidade. E o menino é criado para o mundo. Em vez de buscarmos – guardando as nossas diferenças biológicas bem-vindas – intercambialidade em uma base de valoração igual, já existe desde a infância uma desvalorização da menina. E isso vai se realizando ao longo da vida em algumas sociedades mais do que em outras.

Então, o feminismo é um movimento político – um movimento político no sentido de que trabalha com estruturas de poder e não no sentido político-partidário – para que, partindo das nossas diferenças, nós possamos construir igualdade de oportunidades. Que tanto homens, quanto mulheres possam sonhar juntos que seu lugar no mundo é um lugar cheio de possibilidades.

É difícil compreender isso, mas o que nós temos dentro desta concepção ampla do que seria o feminismo são agendas, agendas que são trabalhadas. Vejamos quais têm sido as principais agendas do movimento feminista: a primeira, que vai remontar aqui no Brasil ao século XIX, é a agenda da educação. As mulheres não podiam cursar as universidades, havia uma barreira clara em nível da educação.

O sufragismo feminino foi um movimento que lutou para que as mulheres também tivessem o direio de votar (sufrágio).

A outra grande agenda que marca o movimento de luta pela igualdade da mulher é o chamado sufragismo. Uma menina que nasce hoje não sabe que em um passado recente ela era uma cidadã de segunda categoria neste país. Talvez sua avó ou sua bisavó não tenham votado, porque o voto só vem em 1932 para as mulheres no Brasil.

Como se diz em inglês, é um work in progress. O trabalho continua, a agenda continua e, com as transformações históricas, vai apontando para outros objetivos. O Brasil é um país de contrastes. Apesar de nós termos uma presidente eleita e reeleita – o que é ótimo em nível pedagógico, porque dá à sociedade em geral, às meninas, às jovens, um modelo de que elas podem sonhar em ser presidentes –, por outro lado, nós temos um parlamento em que a representação feminina é vergonhosa. Então, essa ainda é uma agenda de trabalho.

Na agenda da educação nós precisamos celebrar, em uma luta política você também celebra e reconhece vitórias. No Brasil, hoje, a educação formal das mulheres supera a dos homens. Nas universidades, nós já temos uma presença significativa de mulheres, inclusive começando a quebrar aquela barreira de que a mulher esuda certas carreiras e o homem outras – o que traz para homens e mulheres uma condição humana muito mais rica de possibilidades. Na parte do mercado de trabalho, nós também estamos avançando no Brasil. Entretanto, ainda é uma agenda a ser desenvolvida, na medida em que por trabalho igual com formação igual as mulheres ainda ganham cerca de 30% menos do que os homens.

Em que momento o feminismo se organizou no Brasil?

É muito importante lembrar, sobretudo para as pessoas mais jovens, que nós tivemos 21 anos de ditadura. E é neste momento de ditadura que o feminismo enquanto movimento político surge no Brasil. Ele surge como um movimento que está intrinsecamente ligado ao movimento pela democratização do país. Nesta grande agenda de resistência à ditadura, de resistência às violações de direitos humanos do Estado, um grupo de mulheres fala o seguinte: democracia, sim, mas vamos qualificar a democracia. Democracia na rua, democracia em casa. Democracia é também igualdade de direitos entre homens e mulheres.

Nos grandes momentos revolucionários, nos grandes momentos de transformação política, você frequentemente percebe que agendas que dizem repeito às mulheres ficam de lado. Eu sempre gosto de me referir à história, porque ela nos ajuda a entender o que acontece até hoje. E sempre que eu penso no papel das mulheres neste grande momento político do Brasil de instauração da democracia, eu me lembro da Revolução Francesa.

Na Revolução Francesa, que fala em liberdade, fraternidade e igualdade, você tem um movimento de mulheres liderado por Olympe de Gouges, que diz que esperava que o sentido de igualdade também se referisse às mulheres. Entretanto, a Olympe de Gouges e todo o grupo de mulheres feministas daquele momento revolucionário de fundação, são não só alijadas, como condenadas. Inclusive, Olympe de Gouges é decapitada e na sua sentença se lê que ela quis assumir o papel de um homem.

Então, é muito importante ter presente que nestes momentos de reinstauração de uma ordem democrática, democracia para todos, tudo bem, mas todos não são iguais. Dentro deste todos você encontra uma série de grupos sociais que não são iguais – negros, indígenas, mulheres… É muito importante que ao lado da bandeira coletiva você tenha também agendas que são agendas próprias e agendas epecíficas.

  • Olympe de Gouges (1748-1793) Escritora, jornalista e dramaturga. Assim como outras mulheres, teve atuação marcante na Revolução Francesa (1789-1799). É autora da Declaração dos Direios da Mulher e da Cidadã, de 1791, escrita como uma reposta à Declaração dos Direios do Homem e do Cidadão, de 1789, elaborada pelos deputados da Assembleia Nacional Francesa. Foi executada devido aos seus posicionamentos em defesa dos direitos das mulheres contra a pena de morte e antirracistas.

 A queima de sutiãs nunca aconteceu! Em 1968, um grupo de ativistas protesou em frente ao local onde estava acontecendo o concurso de Miss América, em Atlantic Ciy, nos Estados Unidos. Elas colocaram em um latão vários símbolos de opressão feminina ligados à ditadura da beleza ideal: espartilhos, cílios postiços, maquiagens, sapatos de salto, revistas e…sutiãs. Até tiveram a ideia de queimar, mas como não conseguiram permissão para incluir este ato no protesto, apenas falaram palavras de ordem para cada objeto jogado fora. É possível ver imagens desta manifestação pública e depoimentos de mulheres que participaram dela no documentário She’s Beautiful When She’s Angry (2014), dirigdo por Mary Dore.

Por que a história da mulher é tão invisível?

Ao longo dos séculos, a memória histórica é de subjugação da mulher. E a história é escrita pelos vencedores. Essa pauta de que os direitos das mulheres são conquistas, mas estas conquistas não estão suficientemente escritas nos livros didáticos, na memória social, na representação simbólica do que é um homem e uma mulher na sociedade, é muito triste. É muito triste e deixa seque las no sentido de que falta com a verdade.

A palavra feminismo traz uma carga negativa, não é mesmo?

É verdade. A mim me chama a atenção que parece que as pessoas precisam simplificar a sua compreensão do mundo. Elas pegam uma coisinha assim pequenininha e aquilo é a porta de entrada para entender um fenômeno muito complexo. Tem uma coisa de queimar sutiã que eu nem sei direito quando aconteceu e, se aconteceu, foi nos Esados Unidos, isso virou uma marca: as feministas queimam sutiãs. Há alguma coisa também de construir a imagem das mulheres que lutam pelos direitos das mulheres de uma forma, digamos assim, desabonadora. Como se essas mulheres fossem mal-amadas, mulheres cheias de raiva com relação aos homens. Você constrói estereótipos com uma facilidade enorme.

Eu acho que isso tem prejudicado muito, mas me chama a atenção o quanto tem durado. Acho uma coisa velha, gasta, mas continua. Você às vezes encontra mulheres que estão na luta e dizem: ah, mas eu não sou feminista, sou feminina! O que é isso? Feminismo é apenas e tão somente a capacidade de identificar desigualdades e injustiças na relação entre homens e mulheres, na relação da mulher com instiuições políticas e de lutar por um mundo melhor e mais igualitário.

É bom para o homem e para a mulher…

É bom para o homem e para a mulher, mas pode também ferir o homem cuja identidade é calcada e construída na medida em que ele se sente superior à mulher. E aí nós entramos no que podemos chamar de a raiz mais profunda do patriarcalismo e que se expressa, muitas vezes, na violência do homem contra a mulher. No Rio de Janeiro, na semana passada, nós tivemos quatro assassinatos de mulheres por seus companheiros. O que isto está espelhando? Está epelhando claramente a sensação de propriedade. Aquele homem se sente proprietário daquela mulher. O seu equilíbrio não está no que ele faz ou deixa de fazer na vida, ele com ele. Está no quanto ele domina aquela mulher. E isto ainda existe no Brasil, esta raiz cultural que contribui para construir masculinidades deformadas. Masculinidades frequentemente calcadas na violência. O papel do homem como violento e só existindo enquanto ele vê a ele mesmo em um espelho como superior a uma mulher – sua mulher, sua companheira, sua namorada, sua amante, sua irmã, sua mãe.

Isso precisa ser desconstruído. Desconstruído nas escolas, nas famílias, na cultura, na mídia, na televisão. É só a partir desta desconstrução que nós podemos trabalhar com a ideia de masculino e feminino salientando as diferenças, louvando as diferenças, mas sem que elas impliquem em desqualificação. E essa desqualificação se dá não só em relações heterossexuais, frequentemente está presente também em relações homossexuais em que o homem que assume o papel “feminino” é menos valorizado. É uma questão que até transcende a biologia, ela é cultural mesmo, da sociedade. Com isso eu quero dizer que a luta pela igualdade entre homens e mulheres – tanto no plano legal, mas também no plano íntimo, no plano, digamos assim, da emoção, da percepção do seu lugar no mundo – é um enorme desafio.

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