Por Mariana Varella
Mariana é cientista social e jornalista de saúde, editora-chefe do site Drauzio Varella e colunista do UOL. Entrevista feita por Angélica Kalil em 2016, que está no livro Você é feminista e não sabe, de sua autoria e da ilustradora Mariamma Fonseca. Confira.
Toda mulher nasceu pra ser mãe? Não, eu acho que não. A gente não nasceu para nada e ao mesmo tempo a gente nasceu para tudo. As possibilidades estão todas abertas. Tem muita mulher que se identifica com a maternidade, é feliz sendo mãe, às vezes sendo só mãe e dando prioridade para o papel de mãe, e tem mulher que não, tem mulher que não quer ter filho.
A maternidade muitas vezes é a porta de entrada para o feminismo – porque na hora em que a gente tem filho algumas fichas caem e você repensa o seu papel no mundo. A mesma coisa acho que acontece com quem não quer ser mãe, pois o preço que se paga por não querer ter filho também é alto. No meu caso foi muito forte isso. Eu sempre tive contato com o feminismo, minha mãe é feminista, então sempre foi uma coisa presente na minha vida. Mas eu só comecei a ser feminista mais ativista mesmo, depois que eu fui mãe. Primeiro, porque eu tive duas meninas, então eu me sinto obrigada, digamos assim, a lutar pelo feminismo. E depois, porque é isso que você falou, ou você tem filhos ou você não tem filhos, mas você não tem como ficar sem lidar com a maternidade. A maternidade ainda é imposta para a mulher. Quando ela rejeita esse papel de ser mãe, ela encontra um monte de dificuldades e preconceitos para achar um lugar na sociedade. Eu vejo muita mulher se vendo mais como feminista depois que precisa enfrentar essa questão da maternidade, seja tendo filho ou não tendo filho, mas na hora em que ela precisa pensar neste papel.
O número de mulheres que decidem não ter filhos tem aumentado no Brasil. Conforme dados de 2014 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 38,4% das mulheres entre 15 e 49 anos não são mães. No mundo todo esse grupo que recusa a maternidade vem sendo chamado de geração NoMo (abreviação de Not Mothers, não mães).
A campanha #AskHerMore (pergunte mais a ela) foi encampada no Oscar de 2015. Nasceu com a proposta de estimular os repórteres a formularem perguntas mais instigantes às atrizes do que as tradicionais indagações sobre roupas e vida doméstica. Um ano antes, a australiana Cate Blanchett interrompeu uma entrevista e perguntou ao câmera que estava filmando seu vestido: – Você faz isso com os homens?
A idealização da mulher como mãe na mídia tem um impacto forte? Ainda é o grande papel da mulher, ainda é vendido como o grande papel da mulher. A gente vê isso nas mulheres que não querem ter filhos e nas mulheres que exercem a maternidade de uma forma que não a tradicional. Essas mulheres são julgadas o tempo inteiro. Está em todos os lugares, aquilo que a gente fala da família margarina é bem isso. É o papel da mãe como a cuidadora, aquela que cuida da família. E o homem como aquele que trabalha fora e tem outros papéis. O homem sempre teve a oportunidade de exercer outros papeis e para a mulher ainda é vendida a imagem da mulher-mãe.
A gente fala muito dessa coisa da culpa materna, que a mulher vive em culpa, e a culpa vem desse papel. A gente não consegue mais, nos dias de hoje, exercer a maternidade da forma tradicional – a não ser que você, o que é legítimo também, viva só para isso. Tem mulher que fala: olha, eu gosto de ser mãe, eu gosto de ser dona de casa e cuidar da minha família. Tudo bem, ela tem direito total de ter esse papel. Mas cada vez vemos mais mulheres dizendo: não, ser mãe só não basta, eu quero outras coisas. Só que, na hora que ela sai para estas outras coisas, ela se sente culpada. É porque está introjetado nela um papel de mãe e ela está deixando de ser mãe.
O homem nunca teve essa culpa. Ninguém pergunta para o homem, por exemplo: como você faz para dividir a paternidade e o trabalho? – como perguntam para as mulheres o tempo inteiro. Você consegue trabalhar dez horas por dia, mas e seus filhos?
Ninguém pergunta isso para os homens Então, eu acho que vem deste papel ainda muito forte da mulher como mãe, a prioridade da vida da mulher precisa ser os filhos, a família, enfim. Qualquer coisa que fuja disso vem com culpa, com acusação e todos esses sentimentos ambíguos.
O tabu do aborto está ligado à idealização da maternidade? Sem dúvida. Tudo que mexe no ideal de maternidade é mal visto. E o aborto, principalmente, porque está na raiz.
Você não pode recusar a maternidade. Exatamente. Uma mulher que diz: não quero ter filho. É uma coisa horrorosa o que ela vive. Acho que esta é uma das grandes questões da mulher, tirar o mito da maternidade, mostrar que a maternidade não é fácil, tem um lado B que é difícil, tem mulheres que não vão querer ser mães, tirar essa aura sagrada da maternidade.
Um estudo desenvolvido pelo Instituto Guttmacher em conjunto com a Organização Mundial da Saúde (OMS) concluiu que os países que liberaram o aborto têm taxas menores de casos do que os países em que a interrupção da gravidez é proibida. Ainda conforme a pesquisa, entre 1990 e 2014, nos países ricos, a média de abortos para cada mil mulheres (de 15 a 44 anos) caiu de 46 para 27. Já nos países em desenvolvimento os números se mantiveram estáveis, passando de 39 para 37 casos.
E outra é a luta pelos direitos reprodutivos. As mulheres têm o direito de planejar a maternidade ou de recusar a maternidade e isso passa pelos direitos reprodutivos. Não tem forma de controle melhor da vida da mulher do que encher ela de filhos que ela não queria ter. Esta foi a forma que a sociedade encontrou de controlar a mulher, controlar a sexualidade da mulher, ela ter filhos conforme os filhos vêm. Então, ela se vê presa naquela estrutura, ela se vê financeiramente presa. A mulher que tem um monte de filhos ou ela trabalha para sustentar e fica escrava deste processo ou ela depende do marido. É uma forma total de controle e submissão da mulher.
Quando a gente fala da questão do aborto, a gente tende a falar só do aborto, mas o aborto faz parte dos direitos reprodutivos. Ele é a última opção, a gente tem que fazer de tudo para que a mulher não chegue lá. Nos países em que legalizaram o aborto, o número de abortos caiu. Há um trabalho todo na área dos direitos reprodutivos para que a mulher não precise passar pelo aborto. Ninguém quer passar pelo aborto, ninguém escolhe. Esse papo que as pessoas usam muito: ah, as mulheres vão começar a usar o aborto como método anticoncepcional. Mentira. Nenhuma mulher fica feliz de ter que passar pelo aborto, elas acabam passando pelo aborto por falta de opção.
Se a gente investir na área de direitos reprodutivos, incluindo a descriminalização do aborto, ele vai ser a última das opções. E a mulher que passar por um aborto, vai passar com segurança e depois vai ser orientada para que não precise passar de novo. Educação sexual é essencial e a gente não tem isso.
As questões de gênero estão cada vez mais saindo dos currículos escolares… Pois é, cada vez se quer falar menos nisso. Mesmo o acesso a anticoncepcionais se costuma falar: ah, qualquer posto tem. Primeiro, não é verdade. Segundo, estamos falando de São Paulo, que é um lugar privilegiado dentro do Brasil. Você vai para a região Norte, por exemplo, não é verdade que todo posto de saúde oferece método anticoncepcional. E, mesmo quando oferece, às vezes a mulher não se adapta a um determinado método e ela não tem escolha, não têm outros, enfim. É uma questão bastante complexa e que precisa ser discutida. Eu acho que a mulher não vai conseguir a liberdade que almeja sem passar pela questão dos direitos reprodutivos. Acho que é questão essencial na luta feminista.
O que você aprende com suas filhas? Eu tenho duas filhas, uma de seis anos e outra de doze, e eu aprendo o tempo inteiro. Com a de doze eu aprendo bastante, porque eu acho que a geração que está vindo aí de mulheres vai ser uma geração maravilhosa. Elas vão ser muito melhores que a gente. Elas têm acesso à informação, elas se questionam, elas exigem um monte de direitos, elas não aceitam mais brincadeiras e assédio dos meninos. Então, eu aprendo bastante com elas.
Eu tenho falado bastante em escolas sobre feminismo e, toda vez que eu vou falar, eu volto muito feliz. As meninas têm questões que eu só fui pensar depois dos trinta! As adolescentes estão vindo com tudo. Eu só acho que é um momento em que elas precisam de muita orientação. O que eu sinto é que elas recebem muita informação e, às vezes, elas não sabem o que fazer com aquilo e aí elas se voltam contra os meninos, o que também não é legal. O legal é tentar trazer os meninos. As escolas que falam sobre feminismo, as escolas que topam trazer esse assunto à tona, é um assunto que está na pauta das meninas, acho muito bacana. Para tentar orientar essas meninas, para elas não ficarem soltas ali com a vontade de aprender e não terem uma orientação. E eu sinto que com a pequena eu também aprendo bastante, porque é uma outra coisa mesmo. A minha geração, hoje pensando, a gente sempre estava abaixo dos meninos. Os meninos faziam esporte, os meninos tinham direito a exercer a sexualidade deles desde cedo. A gente morria de medo de ficar falada, a gente morria de medo de acharem que a gente parecia um menino. A gente sempre era uma coisa pequena, menor. Os meninos tinham todos os direitos e toda liberdade e a gente se apequenava o tempo inteiro. Eu sinto que essas meninas de agora não querem mais esse papel.
Você contou que a sua mãe também é feminista. em geral, eu ouço das mulheres da nossa geração que a mãe não era feminista, então você acaba tendo que enfrentar também a mãe. No seu caso, não teve isso. Eu acho que eu tive a sorte de ter uma mãe feminista e que também, como eu, foi feminista não por opção, mas por necessidade. Quando me perguntam: você é feminista por quê? Eu digo: por falta de opção, queria não precisar ser. Eu vi minha mãe quebrar uma série de tabus e enfrentar uma série de preconceitos, de ser uma mulher separada e com filhos em uma época que ninguém se separava. Eu vi de perto esses preconceitos todos acontecerem. E foi ótimo para mim, em certo sentido, já crescer sabendo da condição da mulher e sentir que cabe à gente mesmo tentar quebrar isso.
A minha mãe não era uma feminista assim tão teórica, acho que isso é um pouco mais recente no Brasil. Sempre teve um feminismo teórico e ativo, mas não era uma coisa assim tão abrangente, era um movimento mais restrito a universidades, enfim. Mas a minha mãe era na prática muito feminista, sempre foi muito feminista. E isso para mim na infância era difícil, porque você ser a filha daquela que está sempre quebrando todos os tabus: podia ser um pouquinho normal para eu poder passar um pouco despercebida nesta escola? (risos) Eu vejo isso com as minhas filhas também, às vezes as minhas filhas queriam que eu apenas ficasse quieta! (risos) Mas, por outro lado, dá orgulho você ver que a mãe está quebrando tabu e está se colocando, se impondo e lutando contra preconceito.