Por Eliana Atihé

Eliana é professora de língua portuguesa, mestre em Comunicação e Semiótica e doutora em Educação pela Universidade de São Paulo – USP.  Entrevista feita em 2015 pela jornalista e escritora Angélica Kalil e que está no livro Você é feminista e não sabe, de sua autoria e da ilustradora Mariamma Fonseca. Confira.

Eliana Atihé

Professora de língua portuguesa, mestre em Comunicação e Semiótica e doutoura em Educação pela Universidade de São Paulo – USP.

Entrevista feita em 2015.

O que a arqueologia nos fala sobre o arquétipo do feminino? Vamos começar pensando sobre essa palavra arquétipo, porque é uma palavra que nem todo mundo consegue digerir, às vezes as pessoas travam. O arquétipo é para a nossa psiqué mais ou menos a mesma coisa que o DNA é para a nossa biologia. São grandes padrões vazios, formas vazias, estruturas vazias que vão sendo preenchidas pela cultura.

Nos anos 1960, quando as mudanças estavam acontecendo na cultura, tinha uma mulher fazendo um trabalho de escavação em uma região que ela chamava de Velha Europa, que é o Leste Europeu – a antiga Iugoslávia, um pouco da Romênia –, uma lituana chamada Marija Gimbutas

Enquanto as mulheres estavam fazendo todo aquele movimento em prol dos seus direitos, a Marija Gimbutas estava literalmente desenterrando nesta região uma cultura que ela chamou de Cultura da Deusa. Inúmeras vilas e aldeias da época do neolítico – o neolítico é o momento que sucede o paleolítico, mas ainda é considerado pré-história na nossa historiografia convencional. E a Marija Gimbutas descobre que essa “pré-história” era na verdade muito avançada. Ela observa primeiro que essas aldeias têm, por exemplo, uma escolha de organização muito interessante. A locação das aldeias não é decidida estrategicamente, não é em um lugar escarpado, difícil de acessar, elas não têm muralhas, pelo contrário. O que é importante é a proximidade da água, a proximidade da terra boa e no lugar mais lindo possível! Lindos lugares!

1- Marija Gimbutas (1921-1994) – Arqueóloga lituana conhecida por suas pesquisas sobre o período neolítico e a respeito da cultura da deusa. Seus estudos mostram que uma sociedade igualitária não apenas é possível, como já existiu.

Outra coisa que ela também começa a desenterrar é o que ela chama de figurinhas, que são estatuetinhas de mulheres, deusinhas assim pequenininhas em uma infinidade de modalidades – tem misura de ser humano com animal, as deusas-pássaro, as deusas- -cobra. E ela começa a observar também uma outra coisa muito interessante: que aparentemente essa é uma cultura igualitária. Qual é a primeira coisa que ela percebe que dá a ela essa noção? As sepulturas são todas parecidas, não tem uma sepultura de um chefe, cheia de objetos, com presentes caros

E ela começa a levantar esta cultura material, a pesquisar do ponto de vista objetivo um momento da história – a gente está falando da Europa, mas no Peru isso também acontece – em que a guerra não era o principal objetivo, em que já havia um desenvolvimento muito bom, por exemplo, das ferramentas de agricultura, a cerâmica era muito desenvolvida também, tecelagem… quer dizer, havia uma tecnologia. Havia, a Marija Gimbutas tem esta hipótese, uma forma de escrita – e diz-se que a escrita só aparece lá na Mesopotâmia com os caracteres cuneiformes.

Ela levanta uma cultura material e diz: é uma cultura não guerreira. Um modo de viver que ela chama de matrifocal, onde a mulher é o símbolo do sagrado porque repete os mesmos ciclos da terra. E como o divino é a terra, a terra é o corpo da grande deusa, que sustenta todos os seres vivos, que dá existência a eles e depois os recebe quando a existência deles termina, a mulher repete exatamente estes mesmos ciclos. Então, a mulher é a portadora concreta e objetiva da energia sagrada. Essas são as hipóteses da Marija Gimbutas, pouquíssima gente ouviu falar dela.

A gente ouve falar do Joseph Campbell, que eu adoro, mas dela não. E me parece que o trabalho dela tem uma importância bem parecida com o do Campbell. Até para o Campbell. Ele escreve a introdução de um livro dela, o mais importante, que se chama A Linguagem da Deusa, e nessa introdução ele diz que a Marija Gimbutas é tão importante quanto a Pedra de Roseta. A descoberta dela é uma descoberta tão importante, tão impactante para a arqueologia e para a nossa cultura quanto a Pedra de Roseta. Porque ela fala que o patriarcado como nós conhecemos, essa visão de mundo da domi nação e da sujeição do mais fraco baseada na guerra, em que os reis são retratados trazendo renques de escravos amarrados pelo pescoço, em que o poder do rei, o poder dos generais é sempre o da violência, da imposição, ela fala: antes do patriarcado se estabelecer, em uma era que durou mais do que a nossa, existiu uma civilização, uma cultura igualitária, que não tinha na guerra, que não tinha na dominação a sua tônica. Só que isso aconteceu nos anos 1970, 80, e ninguém conhece a Marija Gimbutas.

O arquétipo do deus e da deusa é muito forte tanto no indivíduo quanto na sociedade, não é mesmo? E é interessante a gente enxergar a mudança de imaginário na mitologia grega. Zeus, quando vence a batalha sobre os Titãs, convoca os irmãos para compor uma nova ordem no mundo, um Cosmos. O mundo está caótico e ele vai trazer a ordem. Ele junta os irmãos e dá um pedaço do mundo para cada um. Só que tem um problema – ele pelo menos percebe as coisas, já é uma vantagem, né? Ele anda com dois leões de chácara, a força e o poder, Kratos e Bias, um de cada lado, mas ele percebe que só a força e o poder não são suficientes para legitimá-lo como governante do universo. Ele precisa de uma coisa muito sutil que na mitologia grega – híper-patriarcal, hein? – é uma qualidade do feminino. A justiça é representada por uma deusa: Themis, que a gente conhece como sendo aquela dos olhos vendados com a balança em uma mão e a espada na outra. Lembra, aquela que está em frente ao Palácio da Justiça, em Brasília? Ele se casa com ela porque assim, de certa maneira, ele vai legitimar seu poder, agora ele tem a justiça do lado dele. E Themis é a conselheira, a que dá as dicas para ele de como a gente faz as coisas, não só na porrada, a gente faz as coisas ouvindo os dois lados, considerando a situação, com diplomacia, etc e tal.

Bom, primeiro casamento dele, Themis é a justiça tão ideal, tão perfeita que chega um momento que ela fala: olha, não tem a menor condição, nem os deuses, nem os homens conseguem dar conta desse projeto de justiça que é o meu. Ela se afasta, ela vai para o céu, ela vira a constelação da balança, eventualmente ela dá uns conselhos para Zeus. E aí, ele resolve se casar de novo. E ele fala: o que eu preciso mais? O que elas têm que eu não tenho? E pensa em Metis. Ela é uma tiânide também, ela é o Sábio Conselho, aquela diplomacia, aquela inteligência não racional do feminino: hum… esse negócio não está me cheirando bem, hum… não estou gostando disso aqui… Não tem nenhum sinal mensurável no ambiente, mas você entra e já percebeu que a coisa não está legal ou que está ótima. Esta inteligência não racional que a gente chama de intuição é uma coisa que Zeus não tem.

Ele se casa com Metis. Só que ele começa a observar que Metis é mais inteligente que ele. Então – veja se esta não é uma metáfora fantástica de inúmeros casamentos mortais que a gente conhece –, um dia, eles estão na mesa, lá no Olimpo, e ele fala para ela assim: ‘duvida que eu te deixe bem pequenininha?’ Ela fala: “ai, duvido…” E ele, tchum, deixa ela bem pequenininha e sabe o que ele faz? Ele engole ela. E agora Metis vai começar a aconselhá-lo de dentro, mas o poder dela se torna dele. Veja que interessante como essa metáfora nos conta de uma maneira muito mais expressiva o que acontece de fato com a deusa, ela é engolida.

E claro que Metis tem uma sombra também, a manipulação, a tentativa de fazer as coisas de maneira sub-reptícia, o poder das mulheres muito oprimidas. A Casa de Bernarda Alba, as oprimidas que se tornam as maiores opressoras, que manipulam as coisas de dentro, a eminência parda. Esse é o lado sombrio de Metis. Mas vamos voltar ao assunto que você tinha me perguntado. Como é que é essa história do deus único? O deus único, o deus semita, o A Casa de Bernarda Alba (1936) foi a última peça teatral escrita pelo espanhol Federico García Lorca (1898-1936), finalizada pouco tempo antes de ele ser assassinado por forças do governo no início da Guerra Civil Espanhola (1936- 1939). A protagonista da trama, Bernarda Alba, é uma matriarca dominadora que vive em um casarão com as cinco filhas: Angústias, Madalena, Martírio, Amélia e Adela. Deus que é o deus de Abraão. Quando Abraão sai da Caldeia, lá de Ur, da cidade onde ele nasceu, ele sai com este chamado, segundo a Bíblia, de criar uma grande nação. A Caldeia, a Babilônia, tem deusas ainda muito poderosas, muito significativas, muito respeitadas, ele sai dessa cultura onde a deusa tem um status, uma autoridade, levando estas histórias.

E a história da criação do mundo na civilização babilônica é muito interessante, porque ela tem exatamente os mesmos elementos da história do Gênesis, só que a história é contada de um jeito um pouco diferente. Isso o Campbell conta na primeira parte de Mitologia Ocidental, de As Máscaras de Deus, chama-se A Idade da Deusa; esse capítulo e vale a pena ler. Está lá a deusa, no Jardim do Éden, que não se chama Jardim do Éden, ela está lá no jardim e no centro tem uma tamareira, que é a árvore do conhecimento do bem e do mal. As tâmaras estão lá, o marido dela, que é a serpente, está enrolado em volta da casca do tronco da tamareira e os devotos são convidados a entrar no jardim e a provar o fruto do bem e do mal – este é o presente que a deusa dá para aqueles que a honram, para aqueles que a adoram. Você percebe que tem um monte de elementos semelhantes, a cobra, a fruta? Estes elementos vieram junto com Abraão, obviamente foram trazidos, mas nessa nova configuração – ele deixa de ser um cara sedentário vivendo em uma cidade e se torna um pastor seminômade –, a história é editada em favor de um outro propósito, de um outro projeto social, político, religioso. E esse deus que vai se consolidar no Êxodo, quando ele promulga os Dez Mandamentos, esse deus é um deus que não tolera concorrência de nenhum tipo. É um momento em que ainda os judeus são extremamente politeístas, ainda existem resquícios da religião egípcia, porque eles viveram no Egito, ainda existem resquícios da religião mesopotâmica, porque eles viveram lá também, ainda existem as figurinhas, as figurinhas ainda estão nas casas, são as protetoras do parto, são as protetoras das mulheres, são as protetoras da colheita, da semeadura, são as deusinhas

da fertilidade que estão lá. E os profetas no Velho Testamento vão griar contra essas figuras, esses ídolos, essas abominações. Então, a deusa, a Xerath, Ashtaroth, Ashtorteth, ela tem vários nomes, ela se transforma em uma abominação. E com ela o feminino todo recebe essa mesma imposição, essa mesma carga negativa. Eva é a grande pecadora, é a grande tentadora que introduz o pecado no mundo, as suas descendentes carregam consigo essa maldição e todas elas descendem dessa figura feminina que precisa ser literalmente aniquilada, ela precisa ser retirada do cenário do sagrado, o sagrado agora é ocupado por uma única figura. Que mitos o patriarcado escolheu para se defender? Os mitos dos guerreiros, mitos de morte, de sujeição. Mitos de violência contra o feminino, as deusas são frequentemente estupradas pelos deuses, colocadas em seu devido lugar. Se a gente conhecesse um pouco mais essas histórias, a gente veria ainda que os homens também têm sido oprimidos pelo patriarcado há muito tempo.

Inclusive Jesus Cristo, que teve sua história apropriada pelo mundo patriarcal. Lógico, porque ele era subversivo, ele vinha com uma mensagem de amor em um mundo que era só poder, submissão dos mais fracos. Roma está no topo, os sacerdotes lá na Judeia estão em segundo lugar, completamente comandados pelo Império Romano, e Jesus aparece nesse contexto falando de amor, falando de oferecer a outra face. Veja, quem é que apanhava naquela época na cara, do marido? A mulher. Ou seja, quando ele chama esse modelo de oferecer a outra face, ele está se aproximando do feminino oprimido muito mais do que do homem que bate. Ele está muito mais alinhado com esta ordem do amor, que é a ordem da deusa, que é a ordem do presente. Olhe as mulheres que estão servindo a ele, Maria, Maria Madalena, que também é outra vilipendiada, caluniada pelo patriarcado cristão, pelos patriarcas do cristianismo.

O projeto dele é tão revolucionário, pode minar o patriarcado de tal maneira e, veja, os pobres aderindo, as mulheres aderindo, os escravos aderindo, logo essa massa gigantesca vai ser incontrolável. O que a gente pode fazer neste momento em que Roma vive um grande perrengue histórico, o império se esfacelando e sendo ameaçado pelas tribos bárbaras? Que grande sacada, vamos encampar essa religião dos pobres, dos escravos, das massas. E no momento seguinte, a patrística, os patriarcas dizem: pessoal, momento da edição, agora nós vamos editar.

Vamos pegar essa história para nós… As mulheres do cristianismo primitivo são importantíssimas. Elas que sustentam as igrejas que funcionam nas casas, quando Roma ainda está perseguindo os cristãos. São negociantes, comerciantes, mulheres importantes que falam: essa religião a gente quer, essa que nos olha, que nos considera parte importante, protagonistas, essa nós queremos. E elas são traídas logo em seguida.

A Maria Madalena, que os evangelhos apócrifos estão reve­lando que era uma discípula muito importante… Muito importante, talvez a mais importante.

… Ela entrou na história como uma prostituta arrependida. Exatamente. Então, você percebe que é sempre a mesma estratéga, caluniar, colocar a mulher sempre em uma siuação ou de total raglidade e vulnerabilidade ou de perigo. Ela é perigosa, ela é traiçoeira.

A sexualidade é perigosa! A sexualidade é perigosa. Adão teve uma primeira esposa nos relatos tradicionais, Lilith. Lilith foi a primeira mulher de Adão, só que ela queria, de vez em quando, transar com ele por cima. E nesse momento, não, assim eu não brinco mais. E aí ela é literalmente amaldiçoada, expulsa e transformada em uma grande bruxa. Vamos inventar uma mulher mais calminha, que essa é muito problemática, ela quer porque quer ficar por cima na hora da transa, não! É papai e mamãe aqui no Jardim do Éden. E aí vem Eva, mas já vem com o chip errado, Lilith era uma deusa na tradição anterior ao patriarcado. São muitas histórias para contar…

E como faz falta a gente saber e entender essas histórias, nosso inconsciente é muito condicionado por elas.  A gente não tem um solo mítico onde pisar. Esta é uma orfandade. Nós somos órfãos de mitologias. Então, a gente aceita como mitologias o quê? As ideologias políticas: uma tragédia, pau- pérrimas. As ideologias religiosas: outra tragédia, paupérrimas. As crianças não escutam mais as histórias que deram origem à humanidade, que falam dos nossos valores mais importantes, daquilo que nos define como humanos. Aos três anos de idade elas têm que aprender a ler, escrever e fazer conta, elas são roubadas desse momento de estar no mundo em relação com os outros, com as coisas. A gente percebe que o patriarcado criou ao mesmo tempo uma civilização muito poderosa e muito vulnerável.

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