Por Manuela D’ávila
Manuela é política e jornalista. Entrevista feita por Angélica Kalil em 2015, que está no livro Você é feminista e não sabe, de sua autoria e da ilustradora e artista Mariamma Fonseca. Confira.
Por que a mulher ainda tem uma representatividade tão baixa no congresso nacional?
Eu acho que a origem disso é bastante relacionada ao sistema eleitoral do nosso país. Durante muito tempo se reproduziu uma ideia de que as mulheres não votavam em mulheres e, por isso, nós não elegíamos mulheres. Só que nós temos uma presidente mulher e isso quebra um pouco o mito de que a mulher desperta necessariamente o machismo e o não voto. Nós tivemos a Marina Silva como candidata a presidente também muito bem votada. Temos em cargos majoritários mulheres eleitas e, principalmente, no principal cargo do país. Qual é a diferença de uma eleição majoritária para uma eleição proporcional? O financiamento é privado nas duas, mas o financiamento da eleição proporcional é um financiamento onde cada um corre atrás do dinheiro para a sua campanha. E no financiamento da eleição majoritária, os partidos, que são estruturas hegemonizadas por homens, viabilizam e correm atrás do dinheiro para as campanhas dos candidatos. A origem, para mim, tem relação com o peso do dinheiro na política brasileira. As pessoas falam: o Congresso é a cara do povo. O Congresso não é a cara do povo, o Congresso é a tradução que o dinheiro faz da cara do nosso povo. E esse dinheiro vem de onde? Vem de empresas que são masculinizadas. Claro, se a gente vai mais profundamente, a gente vai saber que é muito mais difícil para uma mulher ser militante do que para um homem. A jornada de trabalho dupla que é atribuída culturalmente a nós mulheres incide nos espaços da vida em que a pessoa poderia militar. Eu vou pegar meu filho na creche, ou eu não tenho creche, onde é que fica esse filho? É muito comum a gente ir nas conferências dos partidos – agora até já existem algumas creches ali que fazem recreação com as crianças – e as pessoas se incomodarem por- que a mulher está sentada com o filho pequeno no colo e ele está chorando. Aí pedem silêncio culpando a mulher pelo barulho do filho, quando na verdade ela está fazendo um esforço gigantesco para estar ali com aquela criança. Toda essa rede de ausências do Estado, que deveria ser uma rede de proteção, também dificulta muito mais a vida da mulher do que a dos homens.
Conforme dados divulgados em 2015 pela União Inter-Parlamentar, a representatividade feminina no nosso Congresso Nacional ocupa a 116ª posição em um ranking de 190 países – na Câmara, as mulheres são 9% do total de deputados, no Senado apenas 13% das cadeiras são ocupadas por mulheres. Manuela D’Ávila começou sua carreira política no movimento estudantil. Em 2004, aos 23 anos, foi eleita a mais jovem vereadora de Porto Alegre, RS.
Acaba sendo um círculo, porque com menos representatividade no congresso também as leis não representam a mulher. E se a gente for fazer uma análise não quantitativa, mas qualitativa de quem são as mulheres que chegam ao Congresso Nacional, a gente vai chegar a um número de mulheres comprometidas com a pauta das mulheres ainda menor do que o número absoluto de mulheres parlamentares. Nós temos muitas mulheres parla- mentares – eu não tiro o mérito do trabalho delas, mas facilita a eleição – que são mulheres de governadores, mulheres de prefeitos, que fogem, digamos assim, da militância política. E que têm, pelo menos durante o processo eleitoral, uma campanha facilitada. Assim como os filhos homens de políticos, o nome ainda facilita muito no sistema eleitoral brasileiro. Então, é mais reduzido ainda do que a gente pensa.
Na sua vida pública, que começou muito cedo? Muitas vezes as conquistas vieram acompanhadas de elogios físicos. Isso incomoda você? Eu acho que todas as mulheres se incomodam na mesma proporção com isso. Uma pessoa que tem uma vida pública mais extensa do que uma pessoa que não fez essa opção, claro, é mais atacada. Nós sempre somos valoradas por coisas relacionadas a nossa vida privada. Esses dias eu li – até gostei da expressão, porque ela foi nova pra mim, no meu tempo era sabonete, mulher que passava de mão em mão: essa Manuela é como um corrimão, porque troca de homem toda hora (risos)! É porque, casualmente, me consideram bonita. Mas podiam me considerar feia ou gorda, quando eu engordei, e aí eu estaria estridente por ser mal-amada. É sempre assim, ou é a puta, ou é a mal-amada. Ou é a gorda, ou é a que quer dar para todo mundo. A gente sempre tem alguma coisa relacionada a nossa vida privada, enquanto os homens são ofendidos por coisas relacionadas à vida pública deles.
Nas imagens do discurso que você fez no congresso nacional depois do pronunciamento machista de um deputado em relação a você, no final da sua fala a gente pode ver algumas mulheres chorando. Você se sentiu lavando a alma das outras mulheres naquele momento? Me senti lavando a minha (risos)! Existem momentos que são como aquela música do Chico, a gota d’água, né? Aquilo que o Duarte Nogueira fez, certamente não foi a primeira vez que fizeram comigo e nem tampouco a última. Mas não sei se felizmente ou infelizmente, a gente aprende a comprar menos brigas e a escrever às vezes sobre elas, ou entrar com algumas ações criminais. A gente acaba acostumando a apanhar, mas existe um momento em que o copo transborda e aquele dia, em um certo sentido, meu copo transbordou. Eu estava indo embora do Congresso, eu era líder da minha bancada, ia entrar em meu último ano de trabalho, é como se eu não tivesse mais nenhuma reponsabilidade de ouvir aquilo. Nosso inconsciente às vezes nos protege, se eu tivesse que ficar mais uma vida lá talvez o meu inconsciente me protegesse e dissesse: não vai fazer isso. Mas naquele momento eu racionalizei tudo, vi o que ele tinha feito e acho que realmente foi a minha manifestação mais emocionada em todos os meus oito anos no Congresso. Por que? Porque nesses oito anos foi o que eu mais ouvi. Então, talvez tenha sido assim: deu, acabou, eu vou embora daqui, mas pelo amor de Deus aprendam que eu não vim pra cá porque eu tenho os olhos azuis, até porque eu não tenho (risos)! Cansa. Então, eu acho que aquele momento foi um pouco isso.
No final de 2013, com a frase “o coração tem razões que a própria razão desconhece”, o deputado federal Duarte Nogueira (PSDB-SP) tentou desqualificar a atuação da também deputada federal Manuela D’Ávila (PCdoB- RS). Ela havia referendado a fala do então ministro José Eduardo Cardoso, seu ex-namorado, que estava presente em uma sessão na Câmara dos Deputados. Como reposta, a deputada fez um discurso contra o machismo, amplamente compartilhado nas redes sociais.
Sempre tem um discurso masculino que……que é brincadeira!
E que te desqualifica: que besteira, por que você está brava? Ela está na TPM, né? Eu até brincava lá em Brasília que eles achavam que eu menstruava todos os dias, porque eu estava em TPM todo o tempo! Eu tomo pílula contínua, eu nem entro em TPM, vou contar um segredo pra vocês (risos)! Existem várias coisas relacionadas a isso. Primeiro que é de culpar quem é vítima: fez uma tempestade em um copo d’água, coitado do Duarte Nogueira que teve que aguentar represália nas redes, porque fez uma brincadeira com ela. É a cultura de culpar a vítima pela violência que ela sofre: foi estuprada porque estava de minissaia; eu não sei por que eu estou batendo, mas você sabe por que está apanhando. A criança que é violentada sexualmente: alguma coisa ela fez, ela se insinuou, vocês não sabem como ela era maliciosa, como ela se colocava em cima do padrasto! A cultura da violência gravita em torno de culpar a vítima pela violência que ela sofre: foi assediada no metrô, mas também, estava com decote; quem mandou ir trabalhar com aquele decote? Como é que não vai ouvir que foi promovida porque deu para o chefe, indo com aquela roupa para o trabalho? Então, essa é a nossa cultura. Claro, isso também acontece comigo, só que não é só comigo. É bom que a gente perceba que essa é a regra. E segundo que é comum, depois que dá a “m”, dizer que era brincadeira: ah, eu estava brincando com ela, que mal tem em dizer que o coração tem razões que a própria razão desconhece? É a nossa cultura, só que a gente não percebe que a brincadeira, principalmente a comédia, é um dos eixos principais de criação de preconceito no nosso país Esses dias eu li: a era do politicamente correto é um saco. Não, um saco é esse preconceito teu que não acaba nunca! O politicamente correto não mata ninguém, mas o machismo, o racismo, a homofobia matam. É um pouco essa coisa nossa de levar o que a gente não consegue se responsabilizar para a comédia, só que não tem graça, as pessoas morrem por causa disso. Muitas vezes o oprimido se coloca ao lado do opressor para ser menos oprimido. Isso é muito comum entre as mulheres. São reproduções desse padrão machista de sociedade que colocam as mulheres umas contra as outras. A gente vê esse jogo: ah, eu não sou feminista, eu sou bem casada, eu sou bonita, eu sou magra. Mas eu sou muito otimista, porque eu vejo muito mais mulheres se identificarem com o feminismo. Acho que existe um grau de emancipação de consciência maior e talvez seja isso que gere essa reação tão raivosa dos setores conservadores. Quando a mudança vem, as pessoas sentem que perderam o espaço daquelas ideias completamente ultrapassadas delas.
Você está grávida de uma menina, isso está mexendo com o seu feminismo de alguma maneira? Acho que de várias maneiras. É muito legal pensar que vou colocar uma outra mulher no mundo. Acho que também aumenta um pouco a clareza das dificuldades que nós, mulheres, temos. Talvez eu tenha ficado ainda mais ligada em como a gente educa as nossas meninas de uma maneira repressora e de uma maneira idealizada. E de como a sociedade vai fazendo isso. A gente liga a televisão, as coisas de meninas são todas carregadas de preconceito, de princesinha, de bonitinha, de espera o homem a vida inteira. Isso fica mais claro do que talvez tenha ficado em nenhum outro momento da minha vida.