Cura. Qual o significado desta palavra?
Segundo o dicionário online Aulete, cura pode ser: 1. A ação ou o resultado de curar(-se); 2. Recuperação da saúde; 3. Todo meio de combater uma doença. Em seu sentido figurado, pode ser um tratamento, um remédio ou uma solução.
O que precisamos curar em nós e no mundo neste momento? O que necessita de tratamento, remédio ou solução? Muitas coisas. Nosso estado, o Rio Grande do Sul, carece de muita cura. Medo, ansiedade, a angústia que aparece a cada chuva, como a de hoje, 23 de maio de 2024. A dor das 600 mil pessoas desabrigadas. As doenças infecciosas trazidas pelas águas contaminadas, como preveem infectologistas. Os males da alma, como nos referimos metaforicamente ao sofrimento emocional. Haverá cura? Para a destruição dos recursos naturais que tanto adoece nossa mãe Gaia, existirá solução? E para as mentes doentias de abusadores, cuja indecência foi tamanha ao ponto de vitimarem mulheres e crianças em abrigos? Estas consciências perversas encontrarão a sua cura? Quanta coisa necessita ser curada.
Assisti, esta semana, ao filme Pedágio. É o segundo longa-metragem de Carolina Markowicz. Sobre o que se trata? Cura. Não para tudo que mencionei, tampouco para algo que exija recuperação ou solução. O filme Pedágio aborda um tema sensível e perverso: as terapias de conversão sexual. A protagonista da história é Suellen (Maeve Jinkings), que, para financiar o tratamento de conversão conversão sexual de Tiquinho (Kauan Alvarenga) — seu filho adolescente —, envolve-se com o crime. Ela pratica suas delinquências no pedágio onde trabalha como cobradora, em Cubatão, interior de São Paulo. O “tratamento” de “cura gay” é ministrado por um pastor.
Com maestria, Pedágio mistura drama e humor sombrio ao fazer um retrato da hipocrisia e do preconceito em face de pessoas da sigla LGBTQIAPN+. Que, a propósito, realmente precisam ser curadas. Não da sua sexualidade, claro. Precisam de cura para as enfermidades que venham a ter — se tiverem. Para o medo, a dor, a angústia, o sofrimento. O que, possivelmente, não é o caso de Tiquinho.
O filho de Suellen possui boa relação com a mãe. Tem autoestima elevada e uma baita autoconfiança. Difícil eu entender, confesso. Como, afinal, um menino não aceito conseguiria ser tudo isso? Mas, pensando agora, entendo porque Carolina Markowicz constrói a história assim. Pedágio não é sobre Tiquinho, é sobre sua mãe e a vulnerabilidade que a leva até predadores religiosos. É em relação à hipocrisia daqueles que julgam. É, também, sobre ficar em alerta. “Cura gay” adoece. Quando não mata.
Em outubro do ano passado, a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) protocolizou, juntos aos deputados federais Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ) e Luciene Cavalcante (PSOL-SP), um pedido de investigação contra a Igreja Assembleia de Deus de Rio Verde, em Goiás, por supostamente promover práticas de “cura gay”. No mesmo mês foi apresentado o Projeto de Lei (PL) 5034/2023, que propõe equiparar tais práticas ao crime de torutra, sendo, portanto, inafiançável e tendo pena de reclusão de dois a oito anos.
O PL foi criado após o falecimento de Karol Keller, uma influenciadora conhecida por seu apoio a políticos de extrema-direita. Lésbica, ela contou que havia “renunciado à prática homossexual” depois de um retiro espiritual. No mês seguinte foi encontrada sem vida, após publicar em sua rede social: “perdi a guerra”.
Vale lembrar que a Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 01/99 (de 1999!) determina não caber a profissionais da área o oferecimento de qualquer tipo de prática de reversão sexual. E que em 1990 a Organização Mundial da Saúde retirou a homossexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. E que não existe cura para o que não é doença, problema nem algo precise de remédio ou de solução. Logo, acreditar em uma “cura gay”, além de bestial, é loucura. Ou maldade mesmo.
Se Narcisa diz que a loucura não tem cura, vamos confiar em Lenine, e acreditar que o mundo espera acura do mal. Ainda que a loucura finja que tudo isso é normal. É. Para muita coisa precisamos de cura.
No podcast Bá que Papo desta semana comentamos o filme Pedágio e, a partir dele, abrimos um leque de discussões sobre homofobia, “cura gay”, família, religião e outras camadas que o premiado longa aborda.
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Bá experiência por Diogo Zanella/Estúdio Telescópio