Lenita Ruschel é hoje uma das poucas expoentes da dança nacional em atividade no país. E foi diversas vezes condecorada e homenageada por seu papel destacado de incentivo à dança e ao seu aprendizado.
Desde muito pequena, Lenita Ruschel sabia o que queria ser quando crescesse. A loirinha chamava a vizinhança para brincar de dar aula de ballet. Quando surgia um compromisso familiar ou chovia muito, as miniaprendizes ficavam tristes sem as “aulas”.
Convidada por uma vizinha da família no Menino Deus para organizar uma apresentação no Dia das Mães, a sala da dona Eloah virou palco da turma e no comando estava a pequena Lenita, ao som de um piano de cauda, tocado com maestria pela anfitriã. Não tinha nenhum comentário, só imaginação fértil e uma enorme vontade de se expressar pelo movimento.
Na mesma casa da Rua Antenor Lemos onde Lenita nasceu e deu os primeiros passos, a segunda filha (dos quatro) de Erica e Arnaldo ensinou a dançar milhares de alunos que passaram por sua escola nas últimas seis décadas.
É lá que até hoje que fica a sede principal do Ballet Lenita Ruschel, e também onde viveu até os 97 bem vividos anos a vó Erica — que era como chamávamos a mãe de Lenita. Quem, como eu, teve a sorte de conviver com a vó Erica na infância e na adolescência sabe bem que ela foi um capítulo precioso dessa história e uma figura fundamental na vida de sua talentosa e obstinada filha.
Foi da mãe que a minha professora de ballet herdou a rígida doçura e a determinação pelo trabalho, além de alguns dotes manuais. Já do pai veio um aguçado ouvido musical.
Embora a família frequentasse concertos e flertasse com a arte e a cultura, dançar com seriedade era algo fora de cogitação naqueles tempos.
Na Doutor Flores com os fundos para a Senhor dos Passos, no segundo andar da casa da avó materna de Lenita, Erna Sperb, havia um terraço de onde era possível observar bem em frente, no mesmo andar, as aulas ministradas pelo professor João Luiz Rolla.
Sempre que visitava a avó, ia direto para o terraço e de lá acompanhava tudo com encantamento. O parapeito era a barra, e a música podia ser ouvida com nitidez. Percebendo o claro interesse da menina, Rolla várias vezes a chamou para participar das aulas. Porém, foi só depois da sensível interferência da vó Erna que a neta passou a frequentar as aulas. Era a realização de um sonho.
Lenita nasceu para isso
Manter-se na escola foi outro desafio, que só foi superado com o esforço e dedicação da amorosa e perseverante mãe, Erica, que confeccionava os trajes das coleguinhas para que a filha tivesse oportunidade e condições financeiras de dançar nas apresentações de final de ano.
Com Rolla, aprendeu muito sobre disciplina, técnica, confecção de trajes, a importância do capricho nos uniformes, horários, hábitos e postura que uma boa bailarina deve ter. Depois de passar pela professora Glacy Las Casas, Lenita foi selecionada para integrar o Curso Oficial de Dança no Rio Grande do Sul, dirigido por Lya Bastian Meyer, que muito a influenciou e incentivou.
Nessa época, Lya chamou o então namorado da sua bailarina, Zulphe Nunes Pereira, e perguntou: “Tu tens a intenção de casar com a Lenita?”. Ele respondeu que sim. Dona Lya completou bem séria: “Então vais me prometer que tu nunca vais proibir a Lenita de dar aulas de ballet, porque ela nasceu para isso.”
Lenita dava e frequentava aulas, como aluna do Curso Oficial do Estado (o que hoje, se cultivado e incentivado, poderia ter se tornado um corpo de baile subsidiado pelo governo como os do Rio e São Paulo), e participava das óperas de repertório, que vinham a Porto Alegre de países como Uruguai e Argentina.
Além de ter sido o grande companheiro da mulher na vida, Zulphe seguiu à risca a promessa feita a dona Lya e foi também seu braço direito na escola ao lado da vó Érica. Ainda deixou de presente seus 10 maiores tesouros: as filhas Deborah, Helena e Silvia, e os netos Diego, Marina, Rodrigo, Luíza, Bárbara, Isabella e Pedro.
A primogênita Deborah, além de professora, é uma virtuosa e premiada coreógrafa. Helena também trabalha com dança e é professora. Foi uma bailarina excepcional, formada pelo Royal Academy of Dance de Londres, método adotado na escola desde os anos 1970. A caçula Silvia, para completar o legado da mãe, também vive de dança. Expert em coreografar para adolescentes, com prêmio e convites nessa área, ao lado de Helena e de Lenita, hoje administra as cinco escolas em Porto Alegre.
Nesses mais de 60 anos, Lenita dividiu a atenção entre a escola e a família, engajou-se e apoiou associações, políticas públicas e também festivais de dança em todo o Brasil, como jurada e competindo com seus bailarinos.
Tia Lenita, mestre querida, talvez só nós duas saibamos de fato todos os afetos e significados que nos ligam, mas não tenho outro jeito de encerrar esse texto a não ser te dizendo, em nome de todas as tuas bailarinas, que foi essencial para mim aprender contigo, que com esforço e também com alegria todos somos capazes e que vale à pena tentar e não ter medo de girar nessa vida, porque do chão ninguém passa. Obrigada!
Por Mariana Bertolucci
Originalmente publicado na Bá 19, em dezembro de 2016.
Pingback:Mulher: uma crônica sobre tudo o que somos, e um pouco mais | Revista Bá