Desde do dia 4 de junho que tenho lembrado de mim criança e adolescente. Será porque finalmente quebrei o pé? Zero glamour, não foi deslizando montanhas de neve, fazendo uma pirouette ou praticando yoga. Caí um tombo besta na frente do meu edifício com a Mel, a nossa cadelinha. Pra quem, como eu, acredita que o acaso não existe, aí vai uma pitada de bruxaria para iniciar a leitura: exatamente no mesmo lugar e horário onde eu estava no mesmo 4 de junho, só que de 2023, quando a Antônia me ligou aos prantos, contando que teria que ser operada às pressas depois de destroncar um dedo da mão.

De volta ao pé quebrado. Foram dois meses “para-te quieta”. A liberdade resumiu-se a pular até a cozinha para beliscar algo ou dar uma banda de muletas em alguma programação tranquila na rua. Ninguém assinou meu gesso, não virei atração da turma e nem ganhei mimos ou o mingau de aveia das avós, que devem ter pensado lá de cima: “Continua sem sossego!”

Era a segunda vez que a vida pausava meu corpo adulto. Já a cabeça, estava cada vez mais acelerada.  Botas, muletas, limites, gelos, cadeira de rodas. Aceitar o que não podemos mudar e mudar o que não devemos aceitar. Confirmada a temporada de muletas pela frente, lembrei de quando devorei os livros prediletos de 9 entre 10 misses: Pollyanna e Pollyana Moça. Quando era pequena, eu lia muito. De um tudo. Biografias bem hards para a minha idade, livros sobre a ditadura e o golpe militar, clássicos e mais clássicos gaúchos, brasileiros e internacionais. Inclusive consigo me enxergar, na rede da minha casa da Rua Goitacaz com um livro no colo e morrendo de vergonha da leitora adulta que me tornei. Calma Betty, Calma! Sou de novo uma universitária não-otária e estou cada vez mais feliz entre livros e mais livros. Quem sabe o encontro forçado com a paciência e a resignação não serviria para desengavetar projetos, ler e escrever? Até abdominais em cima da cama eu fiz. Na pausa física, visitas e mais visitas da infância e da juventude.

Me habituei a me movimentar de muletas, mas cada vez que pegava nelas, só conseguia me lembrar das crueldades da madrasta da Pollyanna. Abusos que boa parte das mulheres da minha geração e das anteriores sofreram e ainda sofrem. Nossas vidas reais também são cheias de vilanias e tropeços estúpidos parecidos com o meu e da Mel. Nem sempre se quebra os ossos, mas é inevitável que com o tempo, nos sintamos dilaceradas a cada gatilho, destempero ou reação imatura que temos o hábito de protagonizar ou presenciar no nosso entorno. Ah, você não? Das duas, uma: ou é uma pessoa muito sortuda ou ligeiramente hipócrita…      

Entre uma muleta e um suspiro entediado, a lição que aprendi com a ingênua e otimista Pollyanna sempre me salvava. Explicando para a madrasta o motivo de ter gostado tanto de um inusitado presente, ela concluiu conformada: “Estou feliz porque ganhei essas pequenas muletas, mesmo que o meu sonho fosse ganhar uma boneca. Porque sou muito sortuda de não precisar usá-las.”

Depois de quatro meses, uma enchente surreal que chamamos toda a hora de pandemia, muletas, tornozeleiras não-eletrônicas e botas devidamente aposentadas, a rotina voltou quase ao normal, não sinto dor, mas minha fratura no tornozelo ainda não consolidou e ainda não foi descartada uma intervenção cirúrgica. Encontrei profissionais otimistas e competentes pelo caminho: a Mari e a turma da fisioterapia, os médicos Eduardo e Leon. Sigo frequentando de bom humor, esperançosa e resignada a fisioterapia e cumprindo a agenda de radiografias para a acompanhar a minha (não) evolução. Os espacatos seguem cautelosos, ainda não posso pular, girar, correr e dançar… Vida que segue, que ano intenso. Um terço da humanidade ou mais está deprimido ou remediado, o outro raivoso e descontrolado e o terceiro ansioso e perdido. Guerras inexplicáveis fazendo aniversário, um se explode em Brasília, o outro é eliminado em Congonhas, a primeira-dama manda se f. e uma conspiração digital planeja  assassinatos e golpe de Estado, o mundo inteiro se enfumaçou. Tropeçamos, então é Natal. Queria viajar pra Turquia com a família, mas preciso mesmo reformar a casa e trocar de carro. Não tenho um minuto livre de tanta coisa que preciso e invento de fazer durante todas as horas da semana, mas no domingo sinto falta de um namorado para ver o Fantástico.

Aí, espio as muletas num canto qualquer em que elas sobraram do meu quarto e penso: só queria que as pessoas fossem mais gentis e humildes umas com as outras em todos os tipos de relações. Isso já resolveria mais da metade dos problemas do nosso planeta. Zapeio o Instagram e vejo que Plutão acaba de entrar em Aquário, prometendo uma Nova Era para as próximas duas décadas. Mudanças profundas e transformadoras para quem tiver saúde mental e disposição. Dizem os especialistas, que a longa jornada do planeta até 2044 pode ser um convite para um mundo mais justo e humano, se usarmos as inovações e as descobertas para o bem comum e coletivo. Terminei esse texto e fui ao cinema e percebi que nem tudo está perdido e ainda estamos aqui. Eu e a Pollyanna. Teimosa! Valente! Invencível. Obrigada por não desistir de viver dentro de mim, garota.

Por Mariana Bertolucci

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