Passado praticamente um ano do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado da Covid-19 (CPI da Covid) permanece em repouso nas gavetas dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. São 1,3 mil páginas que apontam o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus ministros como responsáveis por terem tornado política de governo o negacionismo em relação ao poder de contaminação e mortalidade da Covid-19, que causou a morte de 700 mil brasileiros. Por que isso aconteceu? Poderia enfileirar um monte de motivos. Mas vou citar apenas o principal. Simples. O assunto migrou das manchetes para o rodapé das páginas dos jornais até finalmente desaparecer dos noticiários. Como repórter, entendo os motivos pelos quais isso aconteceu. Vou citar alguns. No final da primeira semana de governo, Lula enfrentou uma tentativa de golpe de estado quando bolsonaristas radicalizados quebraram tudo que encontram pela frente no Palácio do Planalto, no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal (STF), na Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF). Até hoje esse assunto ocupa espaços nobres nos noticiários. Nos meses seguintes foram descobertos inúmeros crimes praticados pela administração Bolsonaro, como a venda ilegal de joias da União. E houve a sentença do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tornando o ex-presidente inelegível por oito anos. Há uma enorme fila de rolos envolvendo Bolsonaro esperando a sua vez de entrar nas manchetes. E ainda as guerras entre Rússia e Ucrânia e Israel contra o Hamas, na Faixa de Gaza.
É assim que a imprensa funciona. O principal assunto do momento é a manchete e fim de papo. Principalmente nos dias atuais, quando a velocidade dos fatos é turbinada pelas novas tecnologias de comunicação. Dentro dessa lógica se incluem aqueles acontecimentos que nunca envelhecem devido a sua grande relevância para a população. Portanto, é recomendado que permaneçam nas páginas dos jornais. O relatório da CPI da Covid é um desses assuntos. Vamos aos motivos, que são vários e vou citar os que considero mais relevantes. Não se tem notícia na história do Brasil de um governo que tenha usado todo o seu poder contra os interesses da população durante uma crise sanitária. O ex-presidente e os seus ministros, em especial o então general da ativa do Exército Eduardo Pazuello, fizeram campanha contra a vacina da Covid, montaram um esquema para enfiar garganta abaixo da população medicações ineficazes contra a doença, como a cloroquina, e causaram a crise do oxigênio hospitalar em Manaus (AM), que resultou na morte de centenas de doentes por asfixia – há matérias, documentários e investigações policiais disponíveis na internet. Perante a gravidade desses fatos, a imprensa tem o dever de ficar lembrando o governo Lula que o relatório da CPI da Covid não pode ser esquecido. Alguém no governo precisa assumir a obrigação de não deixar que as denúncias feitas nas 1,3 mil páginas fiquem sem explicação. Vou citar um fato. Há nomes de médicos, hospitais e laboratórios que se envolveram na realização de experimentos ilegais com doentes usando cloroquina e outros medicações sem efeito contra o vírus. Pergunto aos meus colegas. Quando isso aconteceu na história do Brasil? Deixar esse assunto fora das páginas dos jornais é tornar-se cúmplice desses crimes.
Não citei os nomes de envolvidos por já ter feito isso no post de 29 de julho de 2022 Relatório da CPI da Covid é grande grande demais para caber nas gavetas do Aras. Estava me referindo ao então procurador-geral da República, Augusto Aras. Estava enganado. A gaveta era grande o suficiente para acomodar as 1,3 mil páginas do relatório. Nos próximos dias, no máximo semanas, Lula já indicou o novo procurador-geral. Vejo nesse fato uma oportunidade que a imprensa terá para perguntar ao novo ocupante do cargo quais são as suas intenções referentes ao relatório da CPI. Sempre que escrevo sobre esse relatório costumo lembrar aos leitores um fato que aconteceu após a Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945), conflito que deixou cicatrizes profundas na história da humanidade, com 70 milhões de mortes e atrocidades como os campos de concentração onde os nazistas alemães exterminaram 6 milhões de judeus, além de ciganos e outras minorias. Nos tribunais militares de Nuremberg, onde os criminosos de guerra foram julgados pelos Aliados, aconteceram depoimentos de cidadãos comuns da Alemanha. Nesses depoimentos existe um material muito farto sobre os motivos que levaram aquelas pessoas a apoiar um governo que tinha o extermínio das minorias como política oficial. Até nos dias atuais os depoimentos de Nuremberg são usados pelos historiadores para explicar as entranhas do nazismo. Cito essa história porque, para conhecermos as entranhas do que foi a política negacionista de Bolsonaro e seus aliados, é preciso ler e esmiuçar o relatório da CPI da Covid. Como repórter, entendo os mecanismos que levaram pessoas comuns a apoiar o negacionismo em relação ao vírus. Mas tenho dificuldade de entender a participação de médicos e cientistas nessa história. Não só participaram como pregam até hoje contra as vacinas.
Para arrematar a nossa conversa. Lembro-me que quando comecei a trabalhar como repórter, em 1979, era comum encontrar pelas redações velhos jornalistas que davam uma resposta quilométrica sempre que um novato, que chamávamos de foca, lhes fazia uma pergunta. O autor da pergunta ouvia o que queria e o que não queria. Anos depois, um jovem repórter me perguntou sobre crime organizado na fronteira do Paraguai, um assunto que entendo profundamente. Falei com ele uma hora. E, não satisfeito, à noite, na mesa do boteco, voltei ao assunto. Ele foi gentil e ouviu a história que contei. Hoje os velhos repórteres são uma raridade nas redações. Mas o conhecimento está à disposição dos focas ao apertar uma tecla do computador à sua frente. O conhecimento torna o repórter relevante para o leitor. E o conhecimento das entranhas da devastação feita na população brasileira com a política negacionista de Bolsonaro está nas 1,3 mil páginas da CPI da Covid. A primeira pergunta que precisa ser feita ao procurador-geral da República indicado por Lula é o que ele fará a respeito do assunto.
Por Carlos Wagner, repórter
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Foto: EBC