Noite de domingo. Compadre Onofre sapeca alguns pinhões na chapa do fogão à lenha enquanto toma uma caninha assistindo ao Fantástico. Só o fogo amigo e a birita para espantar o frio dos dias. Este inverno que recém começou está sendo um massacre e isto que o compadre não sofreu muito com a enchente que destruiu todo o pago do sul. Salvou-se do desastre, pois mora em pequeno sítio num lugar alto nas bandas do bairro da Glória. O paisano veio de Bagé para a Capital quando moço e está acostumado com o Minuano, mas seus ossos com a idade reclamam do frio. Compadre Onofre desconfia que o Diabo solto é a resposta para tanta desgraça e perscruta o silêncio das redondezas quebrado apenas pelo zumzumzum da televisão. 

O velho gaúcho gostaria de dar uma palavrinha com o Demo antes de se ir para o além. Sabe que não entrará no céu de primeira, quem sabe pegará um purgatório, mas sabe que para o inferno não vai. Foi homem correto e cumpridor da lei durante a vida e honra a memória da falecida comadre Natércia sua companheira. Tem vontade de saber o porquê de tanta maldade e desgraça neste mundo? É homem corajoso. Não tem medo do coiso. Na verdade, queria peitar o chefe dos demônios e quem sabe ter a oportunidade de fazer seus questionamentos. Assuntar sobre o porquê da doença, da morte, do frio, da miséria, da chuva, da dor?

O Fantástico corre para o fim e uma buzina no portão dá sinal. Compadre treme:

– Será o diabo? Ele veio ao meu chamado? – Vai até o local de entrada do sítio e espreita o carro.

A porta do veículo abre e ele depara-se com o filho mais velho do vizinho Jacinto. O rapaz veio lhe pedir uma ferramenta emprestada para um conserto de emergência na bomba de água da casa próxima. Pede desculpa pelo horário, mas estão sem nada no reservatório. O motor engripou e ele e o pai estão tentando consertar. Compadre Onofre, lívido, busca a ferramenta no galpão e corre para entregar ao rapaz que sai sem muitas palavras, mas não esquecendo de agradecer deveras o empréstimo.

Onofre vota para a beira do fogão concluindo que não teria coragem de enfrentar o Diabo. Se apenas com uma visita inesperada quase se borrou, como seria na verdade um encontro com o Demo? Toma um gole da caninha, abre um pinhão e um graveto trinca no fogo fazendo um barulho grande. Neste momento, um cachorro preto, nenhum dos seus, entra pela porta que ficou com uma fresta aberta. Para em frente ao homem e mira-lhe os olhos. Por longos segundos o bicho e o homem ficam quietos, nenhum dos dois baixa o olhar. Compadre Onofre não teme um ataque do animal desconhecido daquelas redondezas. É corajoso. Sem mexer um músculo espera. Uma mordida ou uma desistência. O cão finalmente desiste do ataque, vira-se e sai pela mesma porta que entrou.  A noite segue num frio do Demo.

….uma poesia para aquecer a alma…

Inverno

Se meu corpo sente frio

Meu espírito é fogo

Acordo para sonhar

Dias de estio

Noites de estrelas

E pulo fogueiras

Solto balão

Tomo quentão

Como pinhão

Na festa do frio

Festa quente

Brilhante joia

Iluminando as bandeiras

Que voam ao ritmo do vento dos corações incendiados pelo gelo

Amantes de inverno

Aquecem os corpos

Com o sangue do vinho

Com o beijo rachado

Pela geada-machado

Que corta a terra

E que encerra as manhãs

Com a temperatura em queda

Para que ninguém esqueça

Da estação branca

Da fria indesejada que a todos espreita

Por Susana Vernieri, jornalista, poeta e escritora

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  1. Fátima Regina Gomes Farias says:

    Escrita de puro encantamento. Se lê ouvindo a voz do narrador com sotaque e tudo, ao menos eu viajo na memória e leio assim.
    Parabéns. Texto digno para se ler em roda olhando a brasa no chão.

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