Lá fora é cinza, algo melancólico. Tímidos raios de sol escoam por entre a espessa camada de nuvens que cobre o azul do céu. Um livro e um espresso são minha companhia nesta tarde fria, onde o melhor refúgio é o ambiente acolhedor do Bistrot de la Sorbonne com suas mesas impregnadas de segredos, de mistérios, de luz e de sombra. As paredes, amareladas pelas baforadas de fumaça, retratam a época em que, ao gole do café, seguia-se uma longa e aspirada tragada, quando o fumar representava um traço de vanguarda na juventude moderna. A tinta, desgastada, guarda, em suas matizes esmaecidas, um pouco da história de cada estudante que por aqui passou ao longo dos anos. O Bistrô é centenário, de 1919.
Séculos de saber me cercam; o imponente prédio da Sorbonne Université, fundada em 1253 por Robert de Sorbon, coroado pela magistral Capela de Santa Ursula, cuja cúpula abençoa a praça e o dobrar dos sinos ecoa pelos boulevares. Ao redor, o College de France, o Louis le Grand, a ‘Science Po’, como é chamada a renomada Faculdade de Ciências Políticas que, não raro, forma ministros de Estado e presidentes da Republica. O coração do Quartier Latin é assim, pulsa na cadência das Ciências e das Letras. No século XIII, mestres e aprendizes só falavam em latim, idioma oficialmente utilizado para a transmissão do conhecimento, razão do nome do bairro, gravado para todo o sempre. No século XX, o movimento estudantil conhecido como ‘Maio de 68’, em que os estudantes revolucionários, influenciados por ideais anarquistas e de liberdade, se engajaram na transformação da sociedade, aqui germinou, e se alastrou por toda a França jogando o País numa efervescência social que se estendeu por sete semanas com forte onda de protestos, greves, ocupação de universidades e fábricas. Provocou mudanças e marcou o mundo.
… Abandono a leitura e me pego imersa em uma deliciosa trilha sonora, jazz, soul, bossa nova, que conforta o ouvido e a alma. Muita música brasileira, novos compositores, nomes que desconheço, mas o som, reconheço, e ele é doce, suave, swingado, envelopante, quase um murmúrio. Não dá vontade de levantar.
Através da vidraça, observo o vai e vém dos jovens parisienses, no seu estilo inconfundível, cabelos desalinhados, não, despenteados mesmo, um lindo emaranhado de fios revoltos arrematados por um foulard amarrado em volta do pescoço, com um nó à la francesa, – ninguém consegue copiar -, que confere esse charme, essa personalidade, essa individualidade, essa arrumação displicente, jogado de qualquer jeito, sempre no lugar certo. É inato, é cultural, é francês.
Em Paris, o foulard, echarpe ou cachecol, como queira chamar, é acessório indispensável, para enfrentar o vento, que sopra forte neste incipiente outono. As folhas caem, o pensamento voa, vou me deixando ficar… Aquela sensação de bem estar, sabe, não é? Garçon, um outro espresso, s’il vous plaît!
Maria Alice Ripoll
Paris, outono de 2024