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Tragédia gaúcha não é obra do acaso, ela vem sendo semeada através do tempo

O amanhã do Rio Grande do Sul depende do acerto que será feito entre Lula, Pacheco, Lira e Leite Foto: EBC

Na cobertura da desgraça climática que detonou Porto Alegre e outros 334 dos 496 municípios do Rio Grande do Sul, senti falta de um personagem. Os velhos que moram no Centro Histórico da capital gaúcha. Muitos deles estavam por ali quando, em 1941, o Guaíba subiu 4m76cm. Por 83 anos essa foi a maior enchente na cidade. Perdeu o lugar no fim de semana, quando as águas subiram 5m31cm, ignorando o famoso Muro da Mauá e outros aparatos de contenção contra as cheias que foram espalhados ao longo 66 quilômetros para impedir um novo alagamento. Não adiantou. As barrentas águas do lago passaram por cima de tudo e espalharam danos por vários bairros, deixando a enchente de 41 no chinelo, como dizem os jovens repórteres. Os números mudam várias vezes ao dia, mas na manhã de terça-feira (7) a contabilidade da catástrofe indicava 85 mortos (agora já são 100) e 134 desaparecidos. Como já disse no post publicado na sexta-feira (03) Novo normal do clima instala a rotina da tragédia no território gaúcho, a imprensa local, nacional e internacional está fazendo uma boa e recheada de dados cobertura diária da tragédia. O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), acompanhado por ministros e os presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, voltou ao Estado no domingo (5) para se avistar com o governador Eduardo Leite (PSDB). Havia estado aqui na sexta-feira (03). Vamos conversar sobre os velhos, começando com os moradores do Centro Histórico de Porto Alegre.

Na década de 40, o Centro Histórico era onde vivia e morava a classe abastada da cidade. Principalmente comerciantes, proprietários de fazendas no interior e industriais. Ali ainda existem edifícios elegantes daquela época. Essas informações eu obtive para uma reportagem que fiz nos anos 90. Na época, me chamou a atenção que muitos dos moradores pioneiros continuavam vivendo por lá porque os filhos cresceram e saíram de casa e eles foram ficando. Lembro-me que visitei apartamentos enormes, mobiliados com móveis dos anos 40 e 50, onde viviam casais de velhos. A razão da matéria foi porque muitos deles faleciam e os vizinhos só notavam quando o cadáver começava a cheirar mal. Não sei quantas destas pessoas ainda vivem. Mas acredito que ainda possa haver algumas delas por lá. Na noite de sábado, eu liguei para um amigo que mora em um destes prédios no Centro Histórico e perguntei-lhe sobre o vizinho dele, um senhor já bastante idoso. Ele me disse: “O filho dele apareceu para tomar banho porque faltou água na casa dele”. Tenho alguns conhecidos para quem vez ou outra telefono para jogar conversa fora. É uma conversa boa. Há outro personagem interessante que mora na outra margem do Guaíba, nas ilhas, sendo a principal delas a Ilha da Pintada. São pescadores, descendentes de uma gente que há muitas gerações mora na região. O seu modo de vida, a começar pelas casas que são construídas bem acima do chão, estilo palafitas, é adaptado aos ciclos de enchentes do Guaíba. Nos dias atuais, a maioria da população das ilhas nasceu e cresceu em outras regiões do estado. E se estabeleceu nas ilhas por uma questão econômica. A maioria vive da reciclagem do lixo. E por conta da falta de conhecimento das manias dos rios, eles se tornam vulneráveis às cheias.

Há mais uma história interessante que tem a ver com o que está acontecendo atualmente no Rio Grande do Sul. Nas décadas de 70, 80 e parte de 90, por conta dos bons preços internacionais da soja, as lavouras se espalharam por todos os cantos do Estado. A maneira como o gaúcho preparava a plantação resultou na erosão de centenas de milhares de toneladas de solos para dentro dos rios. Esta terra alterou o curso de vários rios e os tornou mais rasos, o que significa que na hora das cheias as águas chegam a locais que antes não chegavam. Lembro-me de ter feito várias reportagens sobre erosão. No Planalto Médio, região da cidade de Passo Fundo, a cor da água dos rios era a de barro vermelho. O que estou dizendo, citando as reportagens que fiz, é que a mega tragédia gaúcha não começou hoje. Ela vem sendo semeada por várias décadas. Por exemplo: o mau uso dos solos nas lavouras, a especulação imobiliária que aterrou e ocupou áreas que antes pertenciam ao Guaíba e o manuseio errado do lixo urbano. Claro, nós jornalistas não temos como, em cada matéria, fazer uma tese para explicar para o leitor os motivos pelos quais as coisas acontecem. Mas precisamos informá-lo que elas não brotam do chão. Antes, são semeadas para depois crescerem e se tornarem um problema. 

Sempre digo nas minhas palestras para estudantes e profissionais das redações pelo Brasil afora que não defendo a crença de que a velhice traga a sabedoria e muito menos que a juventude nos torne um intrépido inovador. Acredito na persistência e no trabalho. Posto isso, lembro que não podemos jogar na cara do leitor um rolo do tamanho deste que está acontecendo com os gaúchos e dizer simplesmente que ele nasceu, se criou e ficou adulto na falta de educação ambiental de várias gerações. Tem a ver também com falta da punição daquelas pessoas que praticaram crimes ambientais. Há uma enorme fila de crimes ambientais cometidos no território gaúcho sem punição. Fiz muitas matérias sobre o assunto.

Por Carlos Wagner, jornalista

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