Essa crônica é dedicada a meu filhote Juan Ramiro Rodriguez del Toro, conhecido como Pitoco, a protetora Deise Falci e há tantas outras pessoas que trabalham pela causa animal

Adotar um animal muda a nossa vida. Mas adoção é um ato que gera responsabilidade. É necessário ter consciência de que este ser vai depender do seu bom senso, tempo, abertura emocional e de disponibilidade financeira para dar a eles uma vida confortável.

Pitoco chegou aos dois meses na minha casa e a virou de patas para cima. Veio de um canil da prefeitura de uma cidade da Região Metropolitana que, segundo a protetora que o resgatou, os cães passavam tanta fome que quando um morria os outros comiam o corpo do amigo.

Meu irmão disse que ele era do tipo do cachorro que caiu do caminhão da mudança. Meio feinho, caramelo com preto, olho puxado. Na primeira semana degolou todos os brinquedos do mano maior, o Xuxu, que o acolheu de coração aberto e cheio de paciência. Até seu primeiro aniversário, o terrorista aprontava uma safadeza por dia. Eu já chegava em casa e perguntava: “o que tu fez de horrível hoje?”.  A resposta não tardava a aparecer na minha frente. Fios roídos, sapatos estragados, manga de blazer mascada. Isso leva a outra questão que envolve a adoção: um animal não é um objeto descartável. Assumida essa responsabilidade, tenha paciência, busque recursos para educá-lo e tenha fé que tudo se ajeita.

Aos poucos, Pitoquinho se transformou em um cisne. Um SRD (sem raça definida) maravilhoso, com pelo cinza e mechas californianas brancas. Uma fuça linda, cheia de carisma e atitude no seu latido forte. Era o xerife, eu dizia que ele cobrava a mensalidade dos colegas da praça. Tinha uma legião de fãs aos quais ignorava solenemente. Mais novo, não perdia a chance de entrar numa briguinha. Com o passar dos anos virou defensor dos que sofriam bullying. Só uma coisa nunca mudou: seu apetite! Esse era constante. Possivelmente um registro do que passou no início da vida.

Sempre foi super forte. Até que aos 10 anos, o que parecia ser uma tosse era um tumor no pulmão. Fiz tudo que estava ao meu alcance por ele. Tinha plano de saúde, fez exames de todo tipo, duas cirurgias, usava bombinha de asma, tomava remédio, suplementos, fazia nebulização quase diariamente.

Estou contando isso não para dizer o quanto fui leal a ele. A intenção não é essa. Nunca “soltar sua pata” era o mínimo que eu poderia fazer por este ser tão precioso que tive a sorte de conviver por 15 anos. Pois quem gosta de animais sabe que eles são mestres que nos ensinam a evoluir como ser humano. Extraem da gente o nosso melhor. Tudo isso sem pedir nada em troca. Apenas amor.

Então, por que eu estou falando isso? Porque o projeto que foi proposto pelo governo do Estado do RS de dar subsídio para quem adotar animais vítimas da enchente vai contra esses princípios básicos da adoção: amor, cuidado, responsabilidade, persistência e disponibilidade financeira. Depois voltaram atrás, pois a intenção poderia ser boa, mas a proposta era totalmente desconectada da realidade. Aliás, coisa que os políticos andam se especializando em fazer. Ações e projetos de lei que servem a um grupo pequeno ou se prestam para angariar votos de um determinado tipo de segmento social. Sem pensar no bem maior. Sem pensar se isso tem eco com a nossa sociedade e seu funcionamento aqui, em meio ao mundo real, fora de gabinetes.

São iniciativas rasas que mostram o quanto há falta de planejamento, de visão a longo prazo. A mesma coisa pode acontecer com os resíduos sólidos dessa enchente. A maioria quer apenas que seja retirado da porta da sua casa. O destino? Não interessa. Que seja longe dos olhos. Um especialista estrangeiro falou sobre formas de dar um destino mais correto. Não saiu mais nada na imprensa que desse conta de que há um plano concreto nesse sentido. O que se sabe até agora é que um grande novo aterro estava sendo providenciado. Infelizmente, as notícias surgem quando uma nova tragédia ambiental acontece. Aí todos gritam do alto da sua sabedoria para criticar e condenar. Mas, na verdade, somos coniventes com soluções emergenciais que se tornam permanentes. Essa é a realidade no nosso país.

Mas voltando à causa ou caos animal, ter um membro da família de quatro patas é caro. Remédios, ração, tratamentos veterinários, creches, hoteizinhos, nada disso é barato. Há uma indústria com uma cadeia gigante por trás que alimenta esse mercado.

A catástrofe que aconteceu em maio no Rio Grande do Sul trouxe à tona um problema social com o qual protetoras lidam no seu cotidiano há anos. Uma história da qual as autoridades fazem esporadicamente uma participação especial com projetos que não duram um mandato. Não há uma política, uma linha que é seguida. Bom, se não há para seres humanos que votam, imaginem se iria haver para animais.

A protetora Deise Falci, que sou amiga e acompanho seu trabalho desde o início, há 16 anos se preocupa em resgatar, salvar, tratar, castrar, promover adoções responsáveis. As “proteloucas”, como chamam seus críticos, enxugam gelo diariamente. Alguns, atrás de telas de seus celulares, no conforto de suas casas, são capazes até mesmo denegrir a imagem dessas mulheres gigantes. Difícil mesmo é estar na linha de frente na hora da água subindo, dentro de um pequeno bote no meio do Rio Guaíba com frio, chuva, arriscando a vida na correnteza para resgatar vidas que muitas vezes nem os tutores deram importância e deixaram para trás. Muitos deles, inclusive amarrados, prontos para serem sacrificados. E foram. Outros sobreviveram e chegaram nos abrigos com inúmeros sinais de maus-tratos.

São essas guerreiras da causa animal que precisam ser consultadas para que projetos mirabolantes conversem com o Planeta Terra. Se não for pela defesa dos animais, pelo menos para que menos dinheiro público seja desperdiçado. Para que o ponto focal dessas iniciativas não seja apenas a preocupação de esvaziar abrigos que estão lotados, mas de encontrar famílias que os acolham e deem para eles o que merecem: uma vida digna

Por Liège Alves, jornalista, terapeuta floral e mestre em rakiram

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  1. Marilis says:

    Maravilhada com o texto!!! Muito bem escrito!! Normal, sendo de uma escritora famosa !

    Quanto ao Pitocao , sem palavras..,. Chegava na praça e berrava PITOCÃO!!!!!!!!!!! Lá vinha aquele cinza ,lindo , enorme, lomba abaixo ao teu encontro pra buscar um biscoito!!! Amooooooo❤️ saudades forever.

    O restante do texto concordo plenamente !!!!

    Deise ê fantástica!!!! Carismática e uma lutadora que merece tudo de melhor nessa vida!!!! Exemplo de MULHER!! Salvadora e encantadora de animais!!! E de humanos também!!!!!

    Bj Liege!!! Parabéns!!

  2. Rosalilia says:

    Muito bom, Liege👏👏👏Amor e cuidado é do que precisamos, para pessoas, pets e todos os seres vivos. Cuidar, respeitar, planejar adequadamente, inclui manter os pés firmes no chão, considerar as realidades que temos.

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